terça-feira, 2 de outubro de 2007

A opressão da bola

Os brasileiros se cansam de dizer orgulhosos que têm o campeonato de futebol mais democrático do mundo. Sob a égide da emoção com grandes decisões, mas carente de maior senso de justiça - nem sempre quem tinha o melhor aproveitamento levava o título - foram 16 campeões de 7 estados diferentes, de 1971 a 2002. Mas a europeização do modelo administrativo verde-e-amarelo atingiu a fórmula de disputa dos campeonatos, que, desde 2003, passou a ser por “pontos corridos". Pode ter sido o início de uma era de opressão aos clubes tradicionais do país.

Os torneios no modelo "todos contra todos sem final" são implacáveis com roteiristas aventureiros. Sem a final, o final quase sempre é o mesmo. Na Espanha, vencem Real Madrid ou Barcelona, na Itália, Milan, Juventus, Inter ou Roma são os donos do "calcio". Em Portugal, Porto ou Benfica se alternam entre os melhores e, na Inglaterra, Manchester e Arsenal, vez por outra, são incomodados pelo Chelsea ou o Liverpool - apenas para ficar com alguns exemplos.

Não é exagero dizer que o campeonato brasileiro atingiu em 2007 o ápice da concentração de poderes, como que a refletir no campo esportivo um painel social preocupante da nação. Num torneio excludente, aberto a cada vez menos participantes - apenas vinte, nunca antes tão poucos -, muito é dado a quem muito recebeu. São Paulo, Cruzeiro, Santos, potências do centro-sul, mais uma vez rumam firmes para a Libertadores da América, deixando aos demais apenas mais uma vaga por índice técnico. Na parte de baixo da tabela, onde os quatro piores são relegados à segunda divisão, clubes do nordeste sofrem para manter um desempenho competitivo e não caírem. Recém-promovidos, América de Natal e Náutico passaram mais de 70% do campeonato na condição de virtuais rebaixados, e o Sport em nenhum momento vislumbrou o acesso às primeiras colocações.

Em 2003 e 2006, Cruzeiro e São Paulo, dois dos quatro times mais ricos e bem estruturados do país, sagraram-se campeões respectivamente. Há quatro anos, aparecem.ao lado de Santos e Internacional, como os times de melhor aproveitamento na era de pontos corridos. O Corinthians, campeão em 2005 muito mais pela injeção de capital de investidores pontuais do que por méritos administrativos é previsível exceção nessa lista recente. O time na ocasião foi montado com craques dentro e fora das quatro linhas especialmente para justificar o dinheiro mal-batizado do grupo liderado pelo magnata russo Boris Berezovsky, com o aval do hoje investigado Alberto Dualib.

Nesse cenário de ricos e pobres, chama a atenção a derrocada de "velhos ricos". Clubes também do centro-sul, mas que não conseguiram se adaptar às mudanças que exigem o novo cenário, Corinthians, Palmeiras, Botafogo, Flamengo, Vasco, Atlético Mineiro e Grêmio ostentam grande tradição, prestígio político e social nos corredores da Confederação Brasileira de Futebol tanto quanto nos botequins que circundam o mundo do esporte. Só que constituem hoje uma espécie de casta aristocrática perdida no vão entre os clubes de base social sem fins lucrativos declarados e os que se adequaram estatutariamente às exigências do binômio futebol-negócio/ clube-empresa. Em um tempo de menor organização político-administrativa, alguns deles chegaram a orquestrar ações "por baixo dos panos" para se salvarem do rebaixamento. Hoje, têm suas tentativas abafadas pela organização intelectual europeizada, legalmente manifesta no Estatuto do Torcedor, cujo objetivo é garantir transparência administrativa aos clubes.

Vagam à sombra de equipes emergentes, com base de torcedores mais modesta, mas nem por isso menos organizadas. Clubes que souberam se estruturar empresarialmente com rapidez e viram seus esforços recompensados em campo. Paraná, Atlético Paranaense, São Caetano, Goiás, Santo André, Paulista de Jundiaí e Ipatinga fizeram, fazem ou farão em breve o caminho do sucesso, vencendo os tradicionais campeonatos regionais, figurando na primeira divisão nacional ou se classificando para a seletiva Taça Libertadores da América dentro das quatro linhas, como que a refletir a política de austeridade e respeito ao torcedor fora delas.

Ao consagrar o Sâo Paulo virtual bicampeão na era dos pontos corridos, deixar Cruzeiro e Santos perto de uma vaga na Libertadores e relegar a segundo plano equipes como América, Sport, Náutico, Atlético Mineiro e Corinthians, o Campeonato Brasileiro 2007 acende o alerta nos clubes para a necessidade de se organizarem dentro e fora das quatro linhas e gerarem receita para seus cofres, independentemente de seu peso histórico e social. Por outro lado, sinalizam a contaminação (positiva ou negativa?) do futebol, como que a indicar que os parâmetros de exclusão social e econômica do país chegaram ao maior patrimônio simbólico e cultural de classes menos favorecidas do país. Sem a emoção das decisões e vendo seus times de coração sucumbirem ao peso do futebol europeizado, até quando esses torcedores farão dos estádios território de expurgo de frustrações diárias e aspirações de um improvável sucesso pessoal?

Como punição e prêmio, esses clubes ora podem ver a derrocada de seu pavilhão, fazendo eclodir a fúria de fãs acostumados com a glória e os títulos de outros tempos, ora escreverem - definitiva ou pioneiramente - seu nome na galeria dos campeões brasileiros do século XXI. Galeria que tem hoje no São Paulo seu grande modelo vencedor e uma centena de outros clubes à sombra de um passado que parece não querer voltar tão cedo.