sábado, 29 de novembro de 2008

As traves que me sustentam


O aniversário foi do Clóvis, grande amigo das jornadas noturnas no Sportv. Mas houve mais de um presenteado na tarde de hoje, 29 de novembro de 2008.


Foi difícil superar a insegurança, mas após três anos voltei a vestir a capa de vilão e super-herói do camisa 1. Não, não foi um jogo oficial, sequer daquelas peladas com times de coletes. Foi um rachão, um seis pra cá-seis pra lá sem juiz nem compromisso com o placar. Mas como me senti feliz em voltar para a portaria. Sim, porque o gol nada mais é do que uma porta. Não por acaso, os espanhóis chamam o goleiro de portero. Ele frustra as expectativas mais certas dos atacantes e arruina sua própria reputação em questão de segundos. 

Atrás do goleiro, apenas as redes. Não há falha perdoável. Só que neste sábado, até para ser goleiro era preciso encarar o desafio de saltar, cair e me levantar. Sabia que nenhuma defesa mirabolante ou saída arrojada se tornariam mais preciosas do que simplesmente tentar alcançar as bolas. Mero pretexto para voltar à vida. Como diz a Enciclopédia Nilton Santos, maior lateral-esquerdo que o futebol já viu, minha bola é minha vida. 

Também não sou dos que jogam o futebol como se pusessem em xeque a existência a cada dividida. Mas, curiosamente, a sensação que me tocou hoje foi essa. Por outros motivos, claro. Ao longo da vida, sempre sob um travessão e na companhia de dois postes, aprendi a transformar a superfície da pequena área no meu latifúndio. Plantava abraços e colhia amizades; semeava defesas e desfrutava dos momentos de alegria.

Por isso, hoje foi um sábado especial. Daqueles para ficar marcados para sempre. Não me detive mais do que trinta minutos no jogo. Mas era como se, nesse tempo tão breve, todo o mal, insegurança e medo de nunca mais conseguir, tudo isso fosse expurgado em cada vôo cego em busca da bola.

No aniversário do meu amigo Clóvis, agradeço a Deus, à minha família, a quem cuidou e cuida de mim com tanto carinho e aos amigos do Sportv por também ter recebido um presente único. Trinta minutos que valeram três anos de espera e despertaram sonhos latentes de salvador das metas. Agora as metas parecem mais tangíveis. Como as traves que hoje me sustentaram.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Vagar


Seu olhar cansado aponta para o nada. Sentada na cadeira de balanço de frente para a pequena televisão, contempla o vazio, no fundo a extensão de sua alma.


Já não se lembra de um minuto atrás. Uma hora que seja de recordações lhe parece fatigante. No máximo, alguns sussurros e fagulhas de memória. Sincroniza seu cotovelo esquerdo com um dos braços do assento mas seus olhos seguem imóveis. Sua pele lívida não deixa dúvidas: por dentro, o tempo parou. Por fora, passou.

Espera resignada o momento de sua partida, após quase 80 anos de vida, ao menos 70 deles de plena consciência, disposição, utilidade para si própria e para o mundo que a cerca. Agora, só faz carregar um certo sopro de tristeza. Não parece fazer diferença se acorda ou dorme, se é noite ou dia, claro ou escuro. Dentro ou fora.

Por isso, começa a trocar as horas. O tempo, antes companheiro fiel de sua lucidez, pára. E não importa que ela recline neste momento a cabeça para o seu lado direito, a procurar os ponteiros do relógio. Não sabe o que marcam. Apenas se limita a contemplar o vazio e dizer: "Está escuro lá fora". E aqui dentro também, faltou completar.

A culpa me contamina quando deixo escapar segundos preciosos de um fim que poderia ter mais alegria, conforto, auto-confiança, tudo o que aquele corpo ainda fosse capaz de sustentar. Se perdera o brilho, permanecia com movimentos potencialmente intactos. Impossível não voltar a três meses atrás, quando, mesmo aparentando fraqueza e debilidade, ela bailou por breves segundos o orgulho das lembranças de sua terra. Tão distante daqui e tão perto de sua mente fugaz. Quanto tempo faz? Para ela, não fez. Pois que derrubou quatro, cinco décadas com o bailar singelo de uma moça feliz a curtir seu primeiro salão.

De volta à realidade, procura motivo, movimento, continuidade. E isso posso oferecer. De fora pra dentro, como que se agradecesse e reverenciasse quem um dia teve tanta ou mais vitalidade que eu.

Por isso vou dormir mais triste. Nossa tristeza é separada por cinqüenta anos e alguns segundos a mais de reflexos e reflexões. Uma dor que nem ela se dá conta. Lucidez e dignidade. Se pudesse ofertá-los a ela, poria a cabeça no travesseiro com a certeza de que o domingo não teria sido em vão. 

Vai passar. Não importa como, mas vai.

sábado, 15 de novembro de 2008

O príncipe plebeu


Príncipe encantado num cavalo branco. Tudo com o que ela sonhou durante anos. Mas o que a encantou nessa história?


O príncipe é o início de tudo. Princípio, começo. De certo modo, também a continuidade de uma linha de pureza. O príncipe é filho da realeza, não sofreu mácula nem misturou seu sangue - ou sua alma - com sentimentos plebeus.

Caminha com segurança, impõe respeito e beleza. Montado num cavalo branco, igualmente belo e puro, ganha em agilidade e destreza. Desafia o tempo cavalgando por campos de incertezas, mas sabe que, herdeiro da coroa e, a bordo da melhor montaria, chegará são e salvo ao coração da donzela.

Que se alimenta do retorno do príncipe. Ou do sonho de conhecê-lo pela primeira vez. Na verdade, reconhecê-lo, como se já fossem preparados um para o outro, como se antes mesmo de a vida e as circunstâncias interporem seus destinos, fatalmente se encontrasem na razão mútua de existirem. A donzela não caminha senão por sonhos doces e searas límpidas. Apenas cobra que, no fim, o príncipe confirme na beleza de sua face e na alvez de seu cavalo o caminho tenro e suave que ela sempre projetou.

A grande questão não é o príncipe nem o cavalo, mas o quão "encantados" eles são, justo porque encanto é primo de feitiço. Um príncipe encantado está inevitavalmente fora de seu estado natural. Só existe em aparência até que algo ou alguém o desencante. E se for desencantado perde a graça, desanda o enredo, decepciona a pobre da donzela, que se desmancha em lágrimas. Ela nem desconfia, mas no fundo o príncipe encantado é um jogo de espelhos que reflete sua beleza e projeta seus vazios.

E como evitar o círculo vicioso? Se ela se fecha, perde contato com um universo igualmente lindo, porém mais aventureiro e perigoso. Se abre as portas do coração à realidade e abandona a idéia do príncipe, pode antecipar o sofrimento e, quem sabe, até descobrir não um príncipe, mas vários homens generosos, educados, como que meios-príncipes. Mas vai inevitavelmente sofrer. Se dará conta de que precisa completar o quebra-cabeças, juntar as peças. De repente a união é uma soma de complementos. Ele tem o que falta em mim e eu tenho o que falta nele. Nada principesco, não? 

Sem viver por ilusões e encantos, ela não deixará de cair do cavalo muitas vezes. Mas, quanto menos se cobrar o príncipe, mais força terá para tomar as rédeas do cavalo. Que, vá lá, pode nem ser tão branco, forte e veloz. Mas certamente domável. E sempre que se levantar e olhar para as cicatrizes em seu corpo, toda vez que sentir seu coração doer um pouco, terá a certeza de que aprendeu um pouco mais sobre o amor. Não se enredará tão facilmente em sonhos ingênuos ou expectativas eternas, por mais belos e tentadores que pareçam. Mesmo sem saber, estará alguns passos mais próxima da felicidade, afinal, nossa razão mais nobre de existir é tão em carne e osso quanto o sorriso ingênuo de um bebê.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Neologismo de posição


Massa demais essa corrida em Interlagos. De cara, David encerra sua longa carreira de forma Coulthard: encontrando um Piquete no S do Senna. Enquanto isso Felipe guia seu deus-nos-acuda vermelho procurando apostar em algo mais que o chove-não-molha das previsões óbvias.


A saída pela tangente é acelerar. Mas como dar zebra, se num Vettel repentino seus cavalos rampantes não despejam potência no Lago? Iria o Sol brilhar para nosso bravo aventureiro ou lhe sobraria o bagaço do Laranja? O problema é que expurgar seu sentimento de Kubica pelos retões curvos de Interlagos não era o bastante. Porque lá pelo meio, Hamilton seguia um estilo Sutil de pilotagem, que, diga-se de ultrapassagem, o faria campeão mundial.

Tudo conspira para a meticulosidade circunstancial do inglês até que alguns Glocks de chuva dão o ar da graça no asfalto secamente britânico. Nada de previsão, seus engenheiros! Qualquer cidadão mortal sabe que finados chove ano sim, ano também. A questão era quando, como e onde. É só olhar pra torcida brasileira. Ela Takuma vontade tão grande que a chuva estrague a corrida do bom moço da ilha da Rainha... e brasileiro quando se junta pra bater tambor, não tem santo que segure.

De enfadonha, a corrida começa a parecer aqueles Bourdais de cidade pequena. Sacode pra cá, segura dali, como o Fisico desses pilotos aguenta? E a cabeça do inglês está um Trulli só, repetindo aquele verso de Flor de Lewis: "eu sei que o erro aconteceu, mas não sei o que fez tudo mudar de vez... onde foi que eu errei?". E por aí vai. Melhor, quase não vai, porque na Junção dos fatos, cada volta derrapante começa a lembrar uma luta de Boxes. Massa resiste bem à pressão da última delas, ao contrário do inseguro Hamilton, que se confunde entre Raikkonens e Kovalainens, como se tomara um porre de Kazuki.

Sorte dele que, enquanto pingos caem e bolsas despencam, a torcida sobe e Felipe voa, falta Timo ao pelotão que o separa do líder. Assim, um piloto de quinta colocação, que sequer subiria ao pódio, se vê consagrado. Campeão por um Nico assim, ó. Um pontinho. Fazer o quê? Ano que vem tem mais. E que de mangueira a gente só ouça falar em fevereiro ou num canto do banheiro!

domingo, 2 de novembro de 2008

A morte nossa de cada dia


Dia de finados costuma ser cinzento por dentro e por fora. Sutilmente, na dor que insistimos cultivar pelos que se foram, perdemos a chance de encarar a morte como fenômeno natural e cotidiano.


Não apenas porque algo ou alguém morre a cada instante. Há pequenas mortes, na realidade fins de ciclos que abrem brechas para transformações importantes em nossa vida.

O nascimento é a primeira grande morte de qualquer ser. Vir ao mundo é, por si só, um processo igualmente traumático para quem concebe e é concebido. Na ruptura de uma gestação, a morte do desejo e das expectativas dos pais; na saída da zona de conforto do bebê, a agonia inconsciente do pranto pós-morte.

A emoção de vencer na vida - independentemente da potência e da dimensão dessa vitória - é também uma morte. Seja calculada ou inesperada, racional ou intuitiva, a sensação de êxtase que nos invade nesses momentos mágicos e esporádicos de existência se assemelha a uma espécie de "orgasmo espiritual" (não por acaso o orgasmo é chamado pelos franceses de petite-mort, algo como "pequena morte").  Saímos de um estágio inerte (que pode muito bem ser um movimento contínuo, para os físicos uniforme) para sacudir a poeira e, finalmente, despertar. Por isso, costumamos chorar. O choro é dessas expressões como o riso e os espasmos musculares do orgasmo inexplicáveis. Apenas reconhecemos nelas um pouco da beleza de ser e viver.

Despertar e morrer são duas faces de uma mesma questão. Quem desperta de um transe - voluntário ou não - faz contato com sua parte essencial, a integridade existencial invariavlemente corrompida e contaminada por idéias fixas, pensamentos ansiosos e falsos quereres. E não há como se estabelecer vínculo com algo tão profundo sem o contato com a morte.

A sociedade do século XXI nos enche de razões e elementos para viver sem morrer. Mas viver sem morrer é passar pela vida sem que a vida passe por nós, quer dizer, apreciar as experiências sem vivê-las ou vivê-las de forma tão transbordante, tão maximizada que engasgamos em nossa própria superficialidade. Ou então damos a nossa alma satisfação de sua profundidade por meio de ilusões como paixões passageiras e aventuras fugazes.

O dia de finados não deveria nos conduzir à tristeza pelo que perdemos, mas a uma reflexão única sobre o quanto temos crescido com as pequenas e grandes mortes. Sempre que morremos ou sofremos a morte de outro como nossa saímos mais fortes, energizados. Enfim, verdadeiramente estamos prontos a viver a plenitude.