sábado, 29 de dezembro de 2007

Um tapa na cara da hipocrisia

A cena chocou meio mundo: um pai-técnico destemperado agride a filha-atleta após o mau resultado no mundial de esportes aquáticos, disputado na Austrália. De quem é a culpa? Da câmera indiscreta.

Por que ela estava lá no vestiário justamente naquele momento constrangedor, senão para nos tornar cúmplices da nossa imagem e semelhança cotidiana? Só para nos forçar a emitir uma opinião socialmente correta sobre o acontecido? Definitivamente, apareceu na hora errada.

Pois fomos nós. Editoriais abertos, textos cintilantes, consciências tranqüilas de que o absurdo da cena do 'espancamento' merecia reprovação veemente. E cumprimos o papel devido de cidadãos.

Na seqüência da cena, a filha parece fugir. Nosso olhar insiste em segui-la. Ela sai do quadro, como se quisesse abandonar o papel principal da tragédia, mas retorna. Como num passe de mágica, o pai volta do transe. Abandona a fúria perfectível de treinador e volta ao pai-humano, enquanto a filha perde os superpoderes de atleta para ser simplesmente... filha.

Para a ucraniana Kateryna Zubkova, pior do que perder uma disputa esportiva seria consumar a dilapidação moral de seu pai em praça pública. Mais por instinto do que por razão, busca, atordoada, o assento. Claramente arrependidos do ato de agressão mútua, pai e filha transferem ao espectador, ainda que sem saber, o papel do constrangimento. Por que aquela câmera estava ligada?

Imagina então se, a cada agressão nossa a um filho, a um irmão ou um companheiro houvesse uma câmera a apontar o indicador para nossa dignidade? Conviveríamos aterrorizados com o monstro do ato que persiste a despeito do nosso arrependimento, de nossa condição humana, dos erros e acertos inerentes ao simples existir. Quem nunca se excedeu, ainda que verbalmente, que atire a primeira pedra. Pensando bem, melhor não atirar. Pode pegar mal...

Por isso, a filha é a primeira a correr em defesa do pai, proibido pela justiça australiana de se aproximar dela em um raio de 200 metros. Sabe que Mikhail Zubkov errou. E daí? Será que ela também não erraria com um de seus filhos? Humanamente, exige que a proibição seja revista. E o tribunal acata.

Somos todos assim. Batemos na vida aqui, apanhamos dela ali. Zubkova prometeu ao pai uma grande atuação que apagasse a vergonha dos Zubkov. No fundo, a ucraniana sabe que, brevemente, Melbourne serão águas passadas de março. Uma furiosa piscina de julgamentos onde, desta vez, a hipocrisia nossa de cada dia levou uma surra da autenticidade.

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Abaixo, você vê a cena da agressão de Mikail Zubkov à filha. As imagens são da Rede Globo, veiculadas no programa Redação Sportv, do canal a cabo Sportv. Luis Roberto apresenta da redação e é auxiliado, em Melbourne/AUS pelo repórter Pedro Bassan.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Nós do vandalismo

Neste domingo o futebol viveu um dia de PCCs, Marcolas e Al-Jazeeras. Quem ligar as televisões hoje e vir as cenas exibidas exaustivamente do jogo entre Internacional e Grêmio vai ter a impressão de que o esporte preferido dos brasileiros extrapolou os limites da sanidade.

A informação mais importante do episódio lamentável não está no fato, mas na cobertura mais uma vez espetaculosa da imprensa, conferindo importância àquilo que não merece, de fato. Parte ínfima da torcida do Grêmio se dirigiu ao estádio do Internacional com duas intenções claras: depredar o patrimônio adversário e ganhar notoriedade num caso em que o jogo seria, para eles, mero detalhe. Conseguiu, parte por irresponsabilidade dos órgãos responsáveis pelo planejamento do espetáculo in loco, parte por falta de senso comum de nós, comunicadores.

Não é a primeira vez que damos publicidade a bandidos, estejam eles travestidos ou não de torcedores. Fazemos exatamente o mesmo que a polícia e os políticos, responsáveis pela manutenção de uma polis minimamente civilizada. Despreparados para exercer plenamente nosso ofício, dirigimos nossos instrumentos para a direção errada.

O presidente da equipe que recebe os baderneiros transfere a culpa ao dirigente adversário, que vaticina: "meus torcedores foram tratados como animais, encurralados em uma pequena parte do estádio sem direito a utilizar os banheiros". Sem perceber a gafe que comete ao generalizar a torcida gremista, mistura o torcedor-fã ao bandido travestido de torcedor. Bota no mesmo pacote duas classes que, de comum, só têm o espaço que lhes foi designado.


A inteligência policial (expressão que, aliás, virou moda) não destacou efetivo suficiente para a partida, subestimando os alertas dados pelos baderneiros, que prometeram ao longo da semana fazer o que de fato fizeram. O roteiro da tragédia estava escrito. Bastava ser executado e rodado.

Um dos raros momentos de lucidez se deu quando a partida foi paralisada. Parte do estádio Beira Rio ardia em chamas e o repórter Luciano Calheiros perguntou a um jogador gremista algo do tipo "ainda dá para fazer alguma análise do jogo diante disso tudo?". Não era o tipo de pergunta para qual boa parte dos jogadores estivesse treinado para responder. Aliás, apenas treinadores estão treinados para responder algo que não está na pauta diária. Poucos treinadores, diga-se de passagem. Personas non-gratas pela imprensa, como o hoje beatificado Felipão ou os tão temidos quanto exaltados Emerson Leão e Vanderlei Luxemburgo.

A propósito, o jogador em questão, diante da pergunta do repórter, fez a típica "análise do jogo": o time está lutando, a partida está "pegada", etc e etc. Perplexo com a falta de engajamento do jogador na questão - diante de parte do estádio envolto numa fumaça negra asfixiante - Calheiros tentou situar o atleta no episódio. Em vão. Eles não usam black-tie.

O grau de exaltação dos bandidos era proporcional à agressividade dos despreparados policiais e do deslumbramento de fotógrafos e cinegrafistas. Se pudessem, pegariam uma sonora com a fumaça: como é estar asfixiando os torcedores? Outros comunicadores, mais comedidos, optaram pelo caminho simplista da hipocrisia: eles deveriam ter tomado alguma providência. Esses vândalos não podem continuar freqüentando os estádios. O policiamento está inadequado. Até quando ou onde isso vai parar, perguntavam-se tão alienados quanto o presidente de clube que generaliza seu torcedor ou o responsável pela segurança que não percebeu o infeliz desfecho que o episódio iria ter.

Vinda da imprensa, dos comunicadores, a pergunta soa esquizofrênica. Eles são parte do espetáculo até o ponto que lhes convêm. Depois, não se sentem culpados por "publicizar" o fato, como não se sentiram quando abriram infindos blocos de Fantástico e afins para cobrir as ações do PCC em tempo real. Marcola devia estar rindo e pedindo por celular que aumentassem o vandalismo cada vez que o programa abria novo link a um de seus repórteres.

A imprensa está órfã da censura e refém da democracia. Falar em censura na imprensa é como apoiar o nazismo. Pois é hora de dizer: há um tipo de censura que precisa ser considerada. Ela é necessária para que não se dê cartaz àqueles que não merecem. Diferentemente da implementada pela ditadura militar, esta se baseia na defesa dos direitos humanos e numa sociedade não-violenta, a começar pela construção da linguagem. Se vivemos num país em que mais de 90% da população recebe informações via televisão, se reconhecemos que somos, de fato, produtores e formadores de opinião e educadores, por que não direcionarmos nosso olhar e nossa linguagem para a reeducação de nossa audiência?

Não basta pregar o fim da violência nos estádios. Enquanto ajustarmos nossas lentes para as arquibancadas violentas e não abolirmos de nosso futebolês palavras como guerra, batalha, tiro, bomba e afins cairemos sempre na hipocrisia da omissão de quem sabe que pode mudar mas prefere angariar votos para a a audiência. O bom-senso agradece.
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Abaixo, a reportagem do jogo entre Internacional e Grêmio, com imagens do canal a cabo Sportv.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Como pode um peixe vivo...

O cruzamento de Jorge Luiz é perfeito. Romário se estica, mas perde para o tempo. Fosse bola, estaria sorrindo de orelha a orelha. Como é Peixe, mergulha no vazio e só encontra a rede.

Romário sonhou com gols. Deram-lhe oito. Pediu uma partida para a história. Por sete vezes a rede balançou em apenas 45 minutos. Suplicou emoção. Disputa de pênaltis. Mas que destino é esse que entrelaça o Peixe na ilusão do quase? Que oferta aquilo que um jogo tem de melhor para o artilheiro, exceto para um sonhador agonizante?


Ninguém deu bola para ele. Bola nos pés do meio-campista, cadê Romário? Bola para o lateral, onde está Ele? Os deuses olham, mas até para eles é difícil encontrar o gênio. Definitivamente, 11 não é a bola da vez. Estatura?

Estigma.

Em noventa minutos tingidos de preto e branco, Romário não tem seu sonho revelado. Ao fim do jogo, suas pernas se transfiguram em cristal frágil, a acusar 23 anos de serviço prestado às redes. Desaba no gramado. "Sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só,
mas sonho que se sonha junto é realidade."

Cansados da romaria angustiante, seus companheiros de equipe não sonharam com o milésimo. Se pudessem, todos reservariam uma baliza só para que ele realizasse sua fantasia e, finalmente, deixasse todos trabalharem. Mas a grandeza do Peixe não permite a nau cruzmaltina seguir rumo solo. Por hora, o Maracanã será sempre palco do onze. Só depois, dos outros dez coadjuvantes.

Sem forças, Romário vê seu time e seu sonho serem penalizados. O Peixe olha fixo e abatido para as redes. E, como apraz ao destino de sua espécie, não esboça reação.

11 de abril de 2007. No dia da estrela solitária Romário, foi outra que brilhou. Na verdade, uma constelação de 11 homens com brio de general e sorte de gloriosos. O Botafogo segue em busca do sonho do bi. Ao Peixe, resta descansar em sua rede de ilusões e aguardar a próxima janela do destino se abrir.

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Abaixo, você confere como foi Botafogo 4 x 4 Vasco no Maracanã, pelas semifinais da Taça Rio pela Globo com a narração de Galvão Bueno e comentários de Sérgio Noronha.


quarta-feira, 28 de novembro de 2007

A violência é um problema ecológico

'Ainda bem que não foi comigo' ou 'a culpa é deles'. Quantos de nós não reagem assim ao abrir mais uma manchete tingida de negro pela violência insana do futebol? Poderia ser na vida, dá no mesmo. O pior de tragédias como as de ontem na Itália não são as mortes físicas, nem as centenas de feridos. Duro é constatar que estamos matando a capacidade de nos indignar. Diante do absurdo, quando muito, resmungamos. Sim, porque não dá para qualificar de indignação a revolta sem ação. E novamente deixamos a vida seguir, o sino da Igreja dar as seis badaladas e o pássaro cantar.


A morte de um policial, após confrontos dentro e fora do estádio de Catânia, fecha as portas no armazém do futebol italiano. Mas que ninguém se iluda: a paralisação do campeonato é uma febre passageira, motivada mais pela incapacidade de discernirmos como, por que ou para onde nos mover do que por um arroubo de civilidade. Já já voltamos a vender e consumir pizzas, como apraz à digna racionalidade de nossa espécie.



Aliás, essa incapacidade de reagir à violência social é sintomática e revela o quão dissociados estamos da dimensão do outro como extensão de nós mesmos. Se não conseguimos ser exatamente indiferentes ao sofrimento alheio, elegemos a hipocrisia ou a conveniência. No primeiro caso, recorremos ao macro: o governo, a polícia, a mídia, as autoridades em geral são incompetentes para frear as mazelas humanas. Em um raciocínio oposto, buscamos na falência do homem a explicação para a derrota diária de nossa cidadania, como se disséssemos que falhamos por natureza e a humanidade é um erro.

Essas duas visões polarizadas nos impedem de reconhecer a mediação com o social - em outras palavras, o cosmo humano. Assim, passamos indiferentes por pequenas coisas, como o vizinho que joga papel no chão, o motorista de ônibus que não pára no ponto, o sujeito que deseja levar vantagem em tudo e até mesmo o bandido que acaba de furtar a pessoa ao nosso lado. Tudo aquilo que não nos afeta diretamente passa despercebido pelo crivo da nossa razão.

O grande desafio da espécie do século vinte e um não é simplesmente calar a boca de bandidos ou sucumbir à fatalidade ontológica. Após milênios de existência, nosso problema continua a ser ecológico. Por isso, convém aproveitar esses pequenos choques de civilização para cada um de nós se perguntar: o que temos feito para evitar que a violência aconteça? A resposta certamente não passa pelas tribunas verborrágicas, mas pela indigna-ação de tratar bem os que nos cercam.
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Abaixo, as cenas da agressão entre torcidas no jogo entre Catania e Palermo, que causou a morte de um policial italiano. As imagens são da emissora RAI, da Itália.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

A opressão da bola

Os brasileiros se cansam de dizer orgulhosos que têm o campeonato de futebol mais democrático do mundo. Sob a égide da emoção com grandes decisões, mas carente de maior senso de justiça - nem sempre quem tinha o melhor aproveitamento levava o título - foram 16 campeões de 7 estados diferentes, de 1971 a 2002. Mas a europeização do modelo administrativo verde-e-amarelo atingiu a fórmula de disputa dos campeonatos, que, desde 2003, passou a ser por “pontos corridos". Pode ter sido o início de uma era de opressão aos clubes tradicionais do país.

Os torneios no modelo "todos contra todos sem final" são implacáveis com roteiristas aventureiros. Sem a final, o final quase sempre é o mesmo. Na Espanha, vencem Real Madrid ou Barcelona, na Itália, Milan, Juventus, Inter ou Roma são os donos do "calcio". Em Portugal, Porto ou Benfica se alternam entre os melhores e, na Inglaterra, Manchester e Arsenal, vez por outra, são incomodados pelo Chelsea ou o Liverpool - apenas para ficar com alguns exemplos.

Não é exagero dizer que o campeonato brasileiro atingiu em 2007 o ápice da concentração de poderes, como que a refletir no campo esportivo um painel social preocupante da nação. Num torneio excludente, aberto a cada vez menos participantes - apenas vinte, nunca antes tão poucos -, muito é dado a quem muito recebeu. São Paulo, Cruzeiro, Santos, potências do centro-sul, mais uma vez rumam firmes para a Libertadores da América, deixando aos demais apenas mais uma vaga por índice técnico. Na parte de baixo da tabela, onde os quatro piores são relegados à segunda divisão, clubes do nordeste sofrem para manter um desempenho competitivo e não caírem. Recém-promovidos, América de Natal e Náutico passaram mais de 70% do campeonato na condição de virtuais rebaixados, e o Sport em nenhum momento vislumbrou o acesso às primeiras colocações.

Em 2003 e 2006, Cruzeiro e São Paulo, dois dos quatro times mais ricos e bem estruturados do país, sagraram-se campeões respectivamente. Há quatro anos, aparecem.ao lado de Santos e Internacional, como os times de melhor aproveitamento na era de pontos corridos. O Corinthians, campeão em 2005 muito mais pela injeção de capital de investidores pontuais do que por méritos administrativos é previsível exceção nessa lista recente. O time na ocasião foi montado com craques dentro e fora das quatro linhas especialmente para justificar o dinheiro mal-batizado do grupo liderado pelo magnata russo Boris Berezovsky, com o aval do hoje investigado Alberto Dualib.

Nesse cenário de ricos e pobres, chama a atenção a derrocada de "velhos ricos". Clubes também do centro-sul, mas que não conseguiram se adaptar às mudanças que exigem o novo cenário, Corinthians, Palmeiras, Botafogo, Flamengo, Vasco, Atlético Mineiro e Grêmio ostentam grande tradição, prestígio político e social nos corredores da Confederação Brasileira de Futebol tanto quanto nos botequins que circundam o mundo do esporte. Só que constituem hoje uma espécie de casta aristocrática perdida no vão entre os clubes de base social sem fins lucrativos declarados e os que se adequaram estatutariamente às exigências do binômio futebol-negócio/ clube-empresa. Em um tempo de menor organização político-administrativa, alguns deles chegaram a orquestrar ações "por baixo dos panos" para se salvarem do rebaixamento. Hoje, têm suas tentativas abafadas pela organização intelectual europeizada, legalmente manifesta no Estatuto do Torcedor, cujo objetivo é garantir transparência administrativa aos clubes.

Vagam à sombra de equipes emergentes, com base de torcedores mais modesta, mas nem por isso menos organizadas. Clubes que souberam se estruturar empresarialmente com rapidez e viram seus esforços recompensados em campo. Paraná, Atlético Paranaense, São Caetano, Goiás, Santo André, Paulista de Jundiaí e Ipatinga fizeram, fazem ou farão em breve o caminho do sucesso, vencendo os tradicionais campeonatos regionais, figurando na primeira divisão nacional ou se classificando para a seletiva Taça Libertadores da América dentro das quatro linhas, como que a refletir a política de austeridade e respeito ao torcedor fora delas.

Ao consagrar o Sâo Paulo virtual bicampeão na era dos pontos corridos, deixar Cruzeiro e Santos perto de uma vaga na Libertadores e relegar a segundo plano equipes como América, Sport, Náutico, Atlético Mineiro e Corinthians, o Campeonato Brasileiro 2007 acende o alerta nos clubes para a necessidade de se organizarem dentro e fora das quatro linhas e gerarem receita para seus cofres, independentemente de seu peso histórico e social. Por outro lado, sinalizam a contaminação (positiva ou negativa?) do futebol, como que a indicar que os parâmetros de exclusão social e econômica do país chegaram ao maior patrimônio simbólico e cultural de classes menos favorecidas do país. Sem a emoção das decisões e vendo seus times de coração sucumbirem ao peso do futebol europeizado, até quando esses torcedores farão dos estádios território de expurgo de frustrações diárias e aspirações de um improvável sucesso pessoal?

Como punição e prêmio, esses clubes ora podem ver a derrocada de seu pavilhão, fazendo eclodir a fúria de fãs acostumados com a glória e os títulos de outros tempos, ora escreverem - definitiva ou pioneiramente - seu nome na galeria dos campeões brasileiros do século XXI. Galeria que tem hoje no São Paulo seu grande modelo vencedor e uma centena de outros clubes à sombra de um passado que parece não querer voltar tão cedo.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

De La Paz a Shizuoka, a redenção do Deus que é brasileiro

Quando Owen, aquele inglês mirradinho com jeito de moleque brasileiro, avançou sozinho em direção ao gol de Marcos, me veio à cabeça um certa sensação de já vi essa cena antes em algum lugar e alguma época. Difícil àquele momento me recordar quando isso ocorrera, mas ainda que tentasse o esforço mental, a bola do garoto britânico acariciando cinicamente a rede brasileira tornaria essa tarefa inglória.

Vazio.


Durante uns quinze minutos, essa sensação carente de explicação – porque carente de si própria – se apossou de todos os brasileiros presentes de alguma forma à Shizuoka, província japonesa onde Brasil e Inglaterra travavam o mais esperado confronto da Copa nas quartas-de-final. Jogadores, torcedores, pessoas ligadas à partida apenas pelo afeto e umas centenas de milhares de cabos de fibra ótica, enfim, todos paralisados na contemplação dele: o vazio.


Vazio de idéias, vazio de futebol, vazio de tudo. O que se viu nos minutos que se seguiram ao feito trágico de Owen foi o desfile da inoperância e burocracia de um futebol tediosamente tático, objetivo, quase-perfeito. Onze homens pálidos de idéias como suas camisas e outros onze amarelos como a do uniforme que deixaram de usar em detrimento de um certo azul que pouco parecia inspirar.


E eu continuava no meu vazio de idéias, marcado no espaço por uma idéia vaga de uma falha irrecuperável de um certo zagueiro Lúcio, que se deixara abater pelo vazio alguns décimos de segundos antes que os demais e no tempo pelos minutos que simplesmente insistiam em passar. O estádio estava cheio. Cheio de gente, cheio do futebol que maltratava a grande dama do espetáculo: a bola. O campo estava vazio. As tribunas de honra estavam vazias, à espera de um simples aventureiro que soubesse tratar com carinho e afeto aquele objeto redondo cansado de apanhar. O estádio estava vazio.




O dentuço flertou a dama. Ela pediu: vem, me conduz; as mentes estão vazias, o campo está vazio; o gol está vazio. Assim ele, em ato de extremo cavalheirismo cortejou-a cuidadosamente pelo tapete verde que dava no altar de um certo Rivaldo, sujeito de pernas compridas e desengonçadas. E foi este quem gentilmente celebrou o casamento da bola com sua razão de ser: o gol.

Estava feita a justiça. O homem de preto emitiu o som do despertar. Tudo igual. Intervalo. Quinze minutos para a libertação do vazio, a volta à realidade.


Mal me dou conta do reinício do espetáculo. Dentro do quadrado colorido apenas uma esfera, um retângulo e alguns borrões: uma barreira e um sujeito cabeludo sob um poste. Nada que aquele dentuço, que antes conduzira sua dama ao altar, não pudesse agora sim efetivar com maestria e genialidade. A dama sai de seus pés, parece igualmente querer sair do palco. Quando todos se preparam para o fim melancólico do ato, eis que ela volta dissimuladamente em uma trajetória de rumo perfeito. O ângulo direito da meta de um atônito sujeito de nome Seaman. Justa e perfeita; perfeita e justa.


O goleiro inglês não quer acreditar no que vê e para mim tudo começa a fazer sentido. O gol de Ronaldinho é a chave que desvenda o mistério da falha de Lúcio e da cena que eu jurava ter visto antes.


La Paz, eliminatórias para a Copa. Último ato do que foi o maior martírio da história da seleção brasileira rumo a um mundial. Jamais havíamos sofrido tanto para jogarmos a maior competição do futebol internacional. Naquele três de novembro de 2001, uma escorregada de um certo zagueiro brasileiro prenunciou a tragédia de La Paz, que se consumaria com um segundo gol que iria morrer no ângulo direito do gol de Marcos. Dois a um. Perdíamos para a Bolívia. Em vão nossa moral, nossa história, nossa camisa. Precisaríamos derrotar a Venezuela na última partida ou não cruzaríamos a barreira do sol nascente. O placar de três a zero contra os venezuelanos não apenas acabaria por nos classificar à copa do oriente, como iniciaria a série invicta de partidas da seleção.

O brasileiro esteve sentido, magoado, ferido. Durante esses sete meses que separaram La Paz de Shizuoka viu seu posto de número um do mundo ruir, acreditou que podia menos. Deus seria mesmo brasileiro?

O dentuço esvoaça suas tranças. Abre um sorriso terrivelmente simpático e honesto: Ele, Ele é brasileiro sim. Como fazer aquela cobrança despretensiosa e sem rumo entrar? Como fazer a gravidade do planeta dobrar e sugar a bola para as redes com tamanha violência e decisão. Ele, ele, eles, o estádio, a torcida, nós. Todos acordam e ouvem a vós que pela primeira vez se ouve ecoar dos céus do oriente: os azuis reagiram; venceram; a competência é novamente brasileira; o bom futebol é novamente brasileiro; Deus, mais uma vez, é brasileiro.

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Abaixo, os melhores momentos de Brasil 2 x 1 Inglaterra pelas semifinais da Copa do Mundo de 2002, com imagens da Rede Globo, narração de Galvão Bueno e comentários de Paulo Roberto Falcão, Walter Casagrande Jr. e Arnaldo César Coelho.


quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Paixões em Valência


Foi uma ligação simples, mas avassaladora.


Dois gênios. Ele, liberal, sempre à esquerda. Ela, reservada, mais à direita.

Num golpe do acaso, se viram atraídos em Valência. Moravam longe, mas nada que aquela ponte não resolvesse.

Aos poucos, perceberam que se completavam. Ele tinha a oferecer o que preenchia seu vazio existencial. E não tardou para encontrarem a química ideal: elétricos de tão radiantes!

Mas relação, sabe como é. Ele acha que o laço é forte, ela se faz de desentendida e, por tabela, começam a sentir falta de algo.

Ele, sempre confortável em sua pseudo-doação, mal percebe que ela precisa de algo mais.

A união começa a se desgastar e logo ele se dá conta: há um outro elemento na história!

Começam a discutir na ligação: "Quantas pontes atravessei para te ver? E, de mais a mais, nos completávamos em uma química sólida!"

"De mais a mais, vírgula", ela retrucou. "E tampouco podemos dizer que é uma relação sólida", desdenhou.

"Mas você me traiu com esse mau-elemento!", esbaforiu irritado.

"Igualzinho a você. Aliás, vocês H são todos iguais..."

"Aqui, Ó!"

A instabilidade atingiu em cheio o núcleo da relação e tudo já parecia ir por água abaixo. Impossível ficar neutro diante de tamanho constrangimento.

Aí lhe ocorreu a ideia de gênio...

"Vá. Abra, sua ingrata.."

"Vê lá o que vai ser essa caixa."

"Já disse que pode abrir..."

Incrédula, desfez o mistério. E qual não foi a surpresa...

"Um anel! Que lindo!"

Foi a chave para reatar a ligação. Ele prometeu-lhe uma vida mais estável e dedicada dali em diante. Na semana seguinte, foram ao padre que, benzeno o anel, proclamou:

"Sejam felizes para sempre!"

E a velha Valência ficou pequena para eles dois...

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Por onde partem os corações


Tudo deveria estar bem, afinal fora uma decisão madura, consciente, segura.

Mas nem sempre as coisas funcionam na prática como se pensa. Ele continua muito, mas muito angustiado por tudo o que vem acontecendo. Não agüenta mais a escuridão, a clausura que se instalou de fora para dentro e de dentro para fora em sua nova casa.

Não agüenta ter de pensar que há um ano curtia sua esposa, com quem tinha uma casinha linda, com quintal para cuidar, comida para fazer, compras do mês, tanta coisa dessas simples, que passavam batidas mas que agora ele vê como fazem falta... Por isso, basta pensar um segundo. Basta olhar uma foto que seja de celular, ali, pequenininha, para as lágrimas caírem dos seus olhos ao perceber que deixou escapar por seus dedos um momento tão especial da sua vida.

Assim, nem forças encontra para manter um segundo relacionamento. Achou que tivesse tomado uma decisão segura de dar chance a alguém que o amasse, mesmo que ele próprio não correspondesse. E lá foi uma menina nova, coitada, pagar o pato dessa incapacidade dele de pensar em outra coisa que não tudo o que lhe escapou pelos dois rios que desceram e ainda descem dos seus olhos para desaguar na lagoa de um passado recente.

Não tem coragem de pensar como seria voltar. Não consegue sequer passar perto daquela ilha. Longe dali, sua vida se automatiza, ele pouco a pouco vira escravo de remédios novamente, sente sono demais, sai de menos, apenas faz canalizar energia para o trabalho, sua válvula desregulada de escape. E quantos não querem um trabalho... Mas ele não quer só trabalho. Não sabe se basta para ser feliz.
Está corroído porque ainda ama alguém que o ama mas não tem coragem de dizer a si própria que pode, deve e quer tomar uma decisão definitiva.

Ele faria tudo para ter de volta o sorriso sincero no rosto, a alegria de viver, fosse brigando daqui, discutindo dali, mas amando. E ele não sabe o que é amar desde quando ela virou as costas para ele e para a casinha dos dois. E se foi.


No fundo ele sabe que nem sempre as coisas correm como se quer.
Por isso, se limita a tocar a vida, mesmo sem ser tocado por ela. Segue um bom trabalhador, mas um ser humano ferido. Não foi só a casa, não foi só a companheira, não foi só a família. Foi um menino-homem de 23 anos que, do dia para a noite, descobriu que não podia mais jogar tênis, ir do Flamengo ao Leblon de bicicleta, jogar futebol aos domingos, correr no aterro, curtir a praia.

Tudo passou a ser doloroso desde 2004. Uma dor que não passa. No máximo, se alivia. Mesmo a esposa, que lhe jurou fidelidade, zelo e compaixão,
um dia ela se cansou. Como a antiga namorada se cansara. Como ele próprio vem se cansando. Afinal, por mais cativante, por mais amoroso e bacana que tente ser com o mundo, há um momento em que conviver diariamente com esses problemas se torna um fardo muito pesado a todos. Assim, vai deixando aos outros pegadas na areia de que ele não quer reagir diante das ondas da vida. Mas alguém faz idéia do esforço que é um simples caminhar na praia num dia de sol?

É sentir falta de ar, enjôo, tontura. Depois, ir ao médico para descobrir que apenas a pressão está um pouco alta. Mas, vá lá, deve ser ansiedade. Então, tome remédio para ansiedade, tome remédio para depressão. E vem o sono. E vai a vida. Para onde vai a vida? Não sabe.

De uns tempos pra cá, só sabe caminhar olhando para o chão e desviando dos obstáculos. Rogando a Deus proteção para que uma luz apareça, para que acorde desse pesadelo que começou em março de 2004, em sua primeira crise séria, e não sabe que dia vai terminar.

Por isso, ainda assim agradece a Deus por cada dia em que pode se levantar e celebrar a vitória da vida. E segue o rumo que seu coração descompassado lhe ordena.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

O maior artilheiro do mundo

* Mais um texto antigo, publicado ano passado no meu blog. Cai bem, no entanto, a todos os botafoguenses já "viúvos" do matador André Lima. Quem sabe o protagonista da história não venha a ser o próximo artilheiro do Fogão?


O Guiness Book registra o australiano Archie Thompson como o jogador que mais marcou gols em uma só partida. Nas eliminatórias da Copa de 2002, a Austrália fez 31 a 0 em Samoa Americana. Thompson anotou 13 e entrou para a história do futebol. O recorde mineiro de gols em uma só partida pertence a Ninão, ex-jogador do Cruzeiro. Pelo Campeonato Mineiro de 1928, o centroavante fez 10 gols contra o Alves Nogueira, de Sabará.

Porém, tanto Thompson quanto Ninão tiveram recentemente suas marcas batidas. O maior artilheiro de todos os tempos, em um só jogo, é Ricardo do Fardo. Pouquíssimos devem conhecê-lo. O time pelo qual ele atua disputa apenas o Campeonato Rural do pequeno município de Tocantins-MG. Ainda assim, o seu feito não deixa de ser histórico, digno de documentação nos papiros do futebol.

Na partida válida pelo Ruralzão-Tocantins 2006, Ricardo do Fardo marcou todos os gols do Guarajá contra o Só Show. O Só Show levou um verdadeiro “showcolate”. A partida terminou 21 a 0. “Hum? Então o cara marcou 21 gols?”

Deveras!

De acordo com Marquinho Cassiano, companheiro de time e testemunha ocular da façanha do artilheiro, nenhum jogador do Guarajá, além de Ricardo, fez sequer um golzinho. Marquinho ressaltou que Ricardo prometera aos defensores do Só Show - time sem chances de classificação no campeonato - um fardo de refrigerantes, caso eles facilitassem sua vida. Por isso, sem contar o espaço na história, Ricardo ganhou também um apelido.

Assim como grandes craques do futebol brasileiro [Jair Bala, Roberto Dinamite, Didi Folha Seca e Jorginho Carvoeiro], Ricardo do Fardo não poderia atingir a fama sem um pseudônimo emblemático. O recorde pode ser contestado devido à condição de atleta amador de Ricardo do Fardo. Sem considerar ainda o fardo de refrigerantes que ele pagou em troca de um refresco dos zagueiros.

Mas quem é que, mesmo naquela pelada de fim-de-semana, já marcou 21 gols em um só jogo? Com fardo ou sem fardo, é tarefa das mais tortuosas. Enquanto não aparecer um que tenha marcado mais de 21 gols em 90 minutos, Ricardo é quem carrega o fardo de ser o maior artilheiro do mundo.

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Ao som da bola

* O texto abaixo foi postado há um ano no meu blog e adaptado para o Nem dou bola. Momento bem propício para a estréia neste espaço e para essa postagem. Afinal, os Jogos Parapan-americanos já estão batendo à porta.

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O que faz do futebol o esporte mais popular do mundo é justamente a sua praticidade. Não são necessários equipamentos complexos, nem mesmo aptidão para o esporte. Uma bola qualquer, um espaço delimitado e demarcações para as duas balizas. São os requisitos básicos para bater aquela tradicional “pelada”.

E, nessas condições, costumam surgir os melhores jogadores; nos subúrbios, nos campinhos de terra ou de várzea. O futebol não é exigente. Em qualquer lugar, quem quiser pode jogar.

Então, como distinguir um bom jogador dos demais?

Velocidade? Força física? Habilidade? Perspicácia? Visão de jogo? Mas quem disse que é preciso visão para jogar bola?

O "futebol de 5" é prova concreta de que a bola rola para todos. A modalidade é disputada por deficientes visuais e segue basicamente as mesmas regras do futsal. A quadra é adaptada para 40m x 20m e as partidas disputadas em dois tempos de 25 minutos.

As equipes têm quatro atletas de linha que jogam vendados. O goleiro enxerga normalmente. No entanto, ele só pode atuar em uma área reduzida, de 2m x 5m. Dentro da bola há um guizo, através do qual os atletas a localizam em quadra. Eles são orientados também por um “chamador” - técnico da equipe – que fica atrás do gol adversário. Por isso, nos jogos do futebol de 5, costuma-se pedir silêncio aos torcedores, que geralmente só vibram na hora do gol.

O Brasil é o atual campeão paraolímpico da modalidade. A seleção brasileira ganhou a medalha de ouro nos Jogos Paraolímpicos de Atenas, em 2004, após vencer a Argentina na final - se bobear, até em futebol de botão os argentinos também são fregueses. Medalha que o país ainda não conseguiu ganhar em Olimpíadas.

Os brasileiros são favoritos nos Jogos Parapan-americanos Rio 2007, que começam na semana que vem, de 12 a 19 de agosto.

Assista aqui a um vídeo da Associação de Esporte e Cultura para Deficientes Visuais, a URECE. A Associação trabalha no estado do Rio de Janeiro incentivando o esporte e promovendo o acesso à cultura por parte dos deficientes visuais.

Dá para notar que nem mesmo a falta da visão impede a prática de um futebol bonito de se ver.

sábado, 4 de agosto de 2007

Não tente ser imparcial

Essa frase deveria ser estampada em todos os quadros-negros das faculdades de jornalismo pelo Brasil. Não vale a pena se formar achando que tem como se isentar de um dos lados ao tomar partido de uma questão qualquer. Viva a liberdade de puxar a brasa para a sardinha, porque quem acha que pode escapar dessa fatalidade anda escorregando feio.

Que o diga o Flávio Prado, que se notabilizou como apresentador do Cartão Verde, da TV Cultura de São Paulo e, atualmente, dirige um programa esportivo na Gazeta, também na maior cidade do país, além de assinar uma coluna no site Gazetaesportiva.net. Lembro-me do Flávio criticando ardorosamente os apresentadores que se rendiam ao poder da publicidade e aceitavam dividir espaço e tempo em seus programas com anúncios dos mais diversos. Foi capa da Carta Capital lá pelo ano de 2003. Dizia que, ao fazer isso, o comunicador perdia a liberdade de criticar o anunciante, caso precisasse. Tinha razão. Mas o que dizer de falar mal do futebol alheio só porque você nasceu no estado vizinho? Pois a parcialidade deu uma goleada em Flávio nesta semana quando o jornalista se meteu a dar opinião sobre o doping do jogador Dodô, do Botafogo.

Abre aspas o Flávio, em sua coluna no site Gazetaesportiva.net "Dodô está liberado para jogar depois da prova e contra prova de sua urina ter dado positivo no exame anti-doping.(...) Não é de hoje que o Botafogo é beneficário desse tribunaleco, ou alguém esqueceu do caso Sandro Hiroshi. Aliás, há um jogador do Juventude, Alex Alves suspenso pela mesma substância e pelos mesmos auditores. É uma vergonha./ Se Dodô for inocente o Botafogo foi no mínimo displicente e teria que ser punido. Aliás penalizados só foram os clubes que enfrentaram uma equipe com jogadores turbinados, sem qualquer punição".

Prado fala de um complô para ajudar o alvinegro carioca, que não vem de hoje e insinua que o clube teria dopado intencionalmente seus atletas e que, por isso, eles estariam tão bem, justificando inclusive a liderança no equilibrado e difícil campeonato brasileiro. Reparem na palavra "turbinado" cheia de más-intenções, quando se refere ao clube.

A acusação que pesa sobre Dodô tem origem no erro de manipulação de um laboratório, que misturou acidentalmente traços de uma substância proibida com cafeína, composto permitido e utilizado amplamente pelo Botafogo em seus atletas. Isso ficou evidente em uma análise particular encomendada pelo próprio clube. A questão é que, perante a justiça, o laboratório não quis assumir. Como se fala em responsabilidade objetiva, fica sempre a hipótese de alguém do clube ter intencionalmente contaminado seus próprios atletas, ainda que isso vá completamente contra o bom-senso.

Quem conhece um milímetro de Dodô sabe que o atacante seria incapaz de compactuar com a insanidade de se dopar com Femproporex, uma espécie de "bolinha" mal-acabada usada por caminhoneiros no Brasil, que traz mais efeitos colaterais como enjôo, náuseas, surtos psicóticos, entre outros, do que benefícios a um atleta de alto rendimento. Definitivamente não condiz com o caráter do artilheiro, primeiro porque ele não precisa disso. Segundo porque ele até poderia ser mau-caráter, mas burro não.

A mágoa de Flávio, no fundo, é com o futebol carioca. Com o Botafogo, que pediu pontos de um jogo que havia perdido de goleada, em 1999 (6 a 1 para o São Paulo) e escapou de ser rebaixado na ocasião (o tal caso Sandro Hiroshi que ele cita). Mágoa também do Fluminense, que caiu para a segunda divisão em 1997, fez manobras políticas para não descer e, quando conheceu o fundo do poço em 1999, voltou da terceira divisão diretamente para a primeira. Por que não dizer, uma pontinha de ressentimento com o Vasco dos mandos e desmandos de Eurico Miranda, como na final da Copa João Havelange de 2000, quando o Vasco conseguiu remarcar uma partida dura contra o São Caetano após a queda de um dos alambrados do Estádio de São Januário. Pensando bem, raiva também com o Flamengo, que, segundo comentários dele próprio na TV Gazeta, só não está na segundona porque é constantemente ajudado pelas arbitragens. Em suma, por ele o futebol carioca bem que poderia explodir.

Mas, estranhamente, vai bem. O Fluminense é o campeão da Copa do Brasil e garantiu vaga na Libertadores da América, competição mais importante do continente. O Vasco está entre os primeiros e, se o campeonato acabasse hoje, estaria também classificado. O Flamengo vai mal, mas é bom lembrar que com vários jogos a menos por causa do Pan-americano. O Botafogo, contra quem Flávio dirige seus dardos do Ipiranga, esse é de matar de raiva. Lidera o campeonato há 17 rodadas, mesmo com seu artilheiro suspenso por um estranho doping manteve a ponta e acaba de ganhar uma licitação para administrar o estádio mais moderno do Brasil: o Engenhão, construído especialmente para o Pan do... Rio de Janeiro. Enquanto isso, São Paulo, que já teve mais de 10 times na primeira divisão, hoje lambe os beiços de ter apenas os quatro grandes, sendo um deles, o Corinthians, na zona de rebaixamento.

É muito para a cabeça desse cidadãopaulista futebol clube.

Aí ele resolve chutar o balde e dizer nas entrelinhas que o alvinegro só é líder porque "turbina" seus atletas com bolinhas de Femproporex. Depois, insiste na picuinha: atesta seu desprezo pelo tribunal de justiça desportiva. Mal se dá conta de que, ao fazer isso, ele despreza sim a inteligência de milhares de leitores ao chutar o bom-senso para escanteio. Flávio, que sempre brigou com os fatos para sustentar sua imparcialidade, acaba de ser surpreendido pelo seu ufanismo bairrista. O pior é que, diferentemente dos que se vendem, permitindo que se anunciem produtos em programas esportivos, não vai ganhar um centavo de recompensa por isso.

Enfim, já deu de Flávio Prado. Apenas para relembrar aos coleguinhas que o Ministério da Saúde Literária adverte: querer ser imparcial faz mal à saúde de vossos textos.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Amor não-linear


- Amor não-linear... Isso! É o título da nossa história. "Amor não-linear". E aí não importa se foi num "news edit", passou pelo "final cut" (aliás, nome sugestivo... rs) e não chegou ao avid (ou seria ápice...rs). Pensando bem, dá para fazer uma boa história sim...

- Quando acabar de escrever eu quero ler...

- E tudo terminou quando perdemos a linha!


- Amo tanto você, mas sou tão tapada!


-
Tapada por quê?

- Meu Deus, nossa historia é perfeita!


- Em tese, deveríamos nos completar. Ao menos, profissionalmente é o que se espera. Texto e imagem... mas dizem que uma imagem vale mais do que mil palavras. Então o que dizer do choro... o que dizer das palavras que custam a sair no momento da despedida... uma história que
é exibida por um controle-mestre. ora, quem é o controle mestre da vida?

- Deus
. E agora você escreveu exatamente o que somos, texto e imagem

- Pois é. E não estava na programação. O Mestre consentiu mas não aprovou o produto final. Cortes demais, algumas piscadas em negro, ausências de áudio... e assim se vai a história de dois apaixonados. Um pelo que pensa e escreve. A outra pelo que sente e pinta em telas de pixels. E quem ensinou a eles onde começa o sonho de um e termina o do outro. Preferiram ver as diferenças. E texto e imagem, no fundo, só serviram para dizer que na vida só se aprende fazendo. Quem vai entender a cabeça desse roteirista genial que é Deus

- Talvez quando o filme acabar a gente consiga entender o pq dessa historia louca que ele nos escreveu


- Verdade. E o "felizes para sempre" só é contado depois que o filme acaba.


- É...
queria ser a editora desse filme e saber o final do roteiro

- Bem, não podemos dizer que Ele não nos deu a oportunidade. e foi Ele mesmo, porque não nos conhecíamos sequer e de repente estávamos trocando beijos, carinhos e amor em uma cama e por telefone, né?
Talvez os atores sejam demitidos depois dessa pré-produção rsrs e tudo terminou quando perdemos a linha rs

- Quero ler o produto final. Pelo menos eu guardo para ficar lendo quando sentir saudades de nós dois...
Vamos dormir?

- Vamos sim. Pra variar, com os anjos. E tomara que não sejam tão atrapalhados como nós!


- Boa noite, durma com os anjos. E estou muito orgulhosa de você!


- Obrigado! E desculpa pela veemência de hoje. Você vai vencer, pode acreditar! Bjão!


- Agora já passou... E quase acabou mal
.

- Quando for sair para andar de bicicleta no aterro me chama, eu tenho uma bicicleta rosa!


- Quem sabe não comece por ali uma nova história?
Diários de bicicleta!

-
Olha, do fundo do meu coração triste, EU TE AMO DEMAIS!!

- Beijos!!!!!!! Do fundo do coração!!!! Muito amor pra você!!!!!


- Eu queria que você me amasse como amou as outras
. Fica com Deus... Bjs.

- Te amei sim, sua boba!
Bjs!

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Por um triz, Matariz!

Fevereiro de 2003.

- Vocês têm certeza de que é isso mesmo o que querem?

A pergunta de Andreia encontrou silêncio no rosto exausto de Felipe. Sabia que um segundo a mais de hesitação era abortar o plano para aquele dia na Ilha Grande.

- Vamos, dá sim. Olha, são oito e meia. Se sairmos até nove, chegamos em Matariz antes de anoitecer.

Meus dois amigos tinham boas razões para não comprarem a idéia. Andreia já havia percorrido o caminho em outra de suas "voltas" na Ilha Grande e, para Felipe, a ida a Cachadaço no segundo dia já valera a viagem. Para mim, a conta era simples: restavam três dias e, se não chegássemos à metade da parte interna da ilha, as chances de desfrutarmos a praia selvagem de Aventureiro seriam mínimas.

Caminhar por Ilha Grande é reviver um pouco da sensação luso-brasileira de Caminha, José de Alencar e Castro Alves. Algumas trilhas simplesmente não existem. São apenas o caminhar pela areia tendo, de um lado, a baía de Ilha Grande límpida (será que hoje ainda está?) e do outro a vegetação costeira que se mistura com os riachos que escorrem do Pico da Pedra D'Água para dar no Poço dos Escravos, nas Ruínas do Lazaretto e no Aqueduto, obras de arte esculpidas parte pela natureza, parte pela ignorância secular.


A caminhada pela Enseada das Estrelas, que tem seu nome relacionado à fartura de estrelas do mar naquele trecho, era relativamente fácil. Daquelas para se contemplar, esquecendo peso nas costas, pernas pesadas e coisas do gênero. E que manhã de verão generosa! Vento fresco e sol tolerável, acabara de se juntar a nós um insistente cãozinho vira-lata que adotamos como mascote.

Mais uma hora e meia, encarávamos a trilha que ligava o Saco do Céu a Japariz. No início, apenas uma trilha escorregadia. Depois, ela mesma, apenas uns bons graus a mais na vertical. Pela primeira vez, percebi o peso de se carregar uma mochila de 60 litros. Felipe ia numa velocidade digna de carros de rali. Andreia, devagar e sempre, fazia o "meio". Eu fechava a fila cada vez mais exausto, e não me cansava de perguntar à parceira quanto tempo faltava.

- Não muito. Mais vinte minutos estamos lá.

As respostas de Andreia sempre tinham a precisão de um cronômetro. Eu e Felipe brincávamos, dizendo que era como se ela vivesse com uma bússola e um relógio incorporados ao seu corpo. Sempre sabia para que direção irmos e quanto tempo precisaríamos.

Em Japariz, foram pelo menos três quartos de hora bem descansados na sombra de amendoeiras próximas a um bar rústico. Com as reservas de água comprometidas pela falta de nascentes ou bicas pelo caminho, nos vimos obrigados a gastar o pouco que tínhamos. O relógio marcava uma e meia da tarde quando partimos para Bananal dispostos a cumprir o roteiro pré-estabelecido.

- E economizem água porque daqui em diante vamos ter poucos pontos de abastecimento, alertou nossa amiga.

Logo de saída, passamos por uma chácara e nosso fiel escudeiro açoitou duas galinhas d'angola, sob os gritos desesperados de "Ei, volta aqui!" "Esse cachorro tem dono?" Para todos os efeitos não, mas, persistente que era, minutos depois estava conosco na trilha.

O relógio marcava 14h30. Seguimos até Bananal, parando antes em Freguesia de Sant'Anna - embora desativada, a principal igreja da Ilha. Alguns escorregões e horas de caminhada, chegávamos a Bananal com o sol das 16h.

O cenário era tentador. Algumas pousadas de um lado e corpos cansados de outro. O sol baixando contra a vontade de deitar até só Deus sabe quando.

- Temos mais duas horas e meia de sol para chegarmos ao camping de Matariz, alertou Andreia.

- Mas não tem como ficar aqui em Bananal? De repente a gente pede para montar acampamento em alguma daquelas pousadas...

- Não, Rafael. Nunca fiz isso. Não temos grana pra bancar pousada e eles não vão deixar três pés-sujos entrarem lá. Mas se quiserem tentar, tentem. Só se lembrem que não temos muito tempo antes do pôr-do-sol.

- Vamos seguir então, Rafa. Esquece essa idéia. Se o camping é em Matariz, paciência...

As palavras de Felipe foram sensatas. Mas doía o coração - para não dizer as pernas, as costas e tudo mais que tivesse articulação - saber que parar em Bananal era igual a escurecer no meio da trilha para Matariz. O tempo estava contado e se não aumentássemos o ritmo consideravalmente, chegaríamos ao destino com o cair da noite, o que em pouco nos ajudaria na busca de um camping.

A última trilha era bem no meio de um mato baixo. Percebíamos o sol se pondo, mas sabíamos que, pela época do ano - fevereiro - ainda seria possível, mesmo sem o horário de verão, procurarmos camping sem a luz de lanternas. Eram 18h20 quando aportamos em nosso destino.

Matariz se resumia a casinhas de pescador, um bar, uma praia muito poluída e alguns terrenos. Um deles virou camping. Na verdade, só se pôde acampar por lá devido à existência das ruas, que nos distanciam um pouco da faixa de areia, onde, definitivamente, a lei não permite armar barracas. E as ruas só estão ali porque, um dia, o lugarejo foi uma fábrica pesqueira.

Corremos para o bar e custamos uns vinte minutos para alcançarmos a dona do camping. Bom, "camping" é uma generosidade para aquele terreno arenoso, cheio de arbustos e saúvas e dois banheiros improvisados. Uma das formigas atacou impiedosamente o dedo médio do pé esquerdo de Andreia. Sorte que já havíamos baixado acampamento. Tempo para eu e Felipe prepararmos o rango da noite - miojo, para variar - antes de irmos para dentro da barraca.

Daquele dia longo viria uma paixão rompante e insurgente de morar um dia em uma ilha. Utopia que, graças a Deus, eu veria se concretizar quatro anos depois no coração de um dos maiores centros urbanos e comerciais do Rio de Janeiro. Pena que tenha durado tão pouco, assim como aquela noite, afinal, o dia seguinte nos esperava para outro dia de sol, desta vez rumo à Praia Grande de Araçatiba.

Mas isso é papo para outra história...

quinta-feira, 21 de junho de 2007

Quando o caminho venceu o destino

Uma das experiências mais ricas que levo da vida até aqui é minha primeira trilha. Quem me apresentou à novidade foi Andreia, uma amiga filha da terra e que hoje se encontra casada com sua razão de viver: preservar a maior floresta equatorial do planeta.

Acabara de entrar para a faculdade e ainda vivia os primeiros semestres de alegria, ansiedade, enfim, tudo o que fosse emocionalmente contagiante. Era um menino do futebol e do video-game até aparecerem os caminhos tortuosos de Alto Caparaó.

A cidadezinha não tem mais de 10 mil habitantes, como naquela época. Mas guarda um dos maiores atrativos da natureza brasileira (maior mesmo, em termos de tamanho): o Pico da Bandeira. Trata-se do terceiro ponto mais alto do Brasil, o mais alto do Sudeste. Tão acima do nível do mar que, reza a lenda, mesmo estando na divisa de Minas com o Espírito Santo, de lá dá para se avistar as águas deste estado. Então era pagar para ver.


Começamos a caminhada no início da noite, por volta de 21h30. A idéia era ver o amanhecer lá de cima. O mês, setembro, não favorecia tanto a aventura , já que tem o bendito "erre" no meio. E, dizia o manual do trilheiro que, para não se surpreender por tempestades, trombas d'água ou coisas do gênero , é bom evitar os meses que contêm essa letra.

Mesmo assim, subíamos pelo vale que margeia o rio Caparaó numa noite gostosa, com uma brisa refrescante e um amontoado de casacos sobrepostos. Éramos conduzidos pelo Sr.Sérgio, hoje capitão da marinha aposentado, pai de minha amiga. Fechando o grupo, mais quatro colegas, cada qual com seu mochilão e barraca nas costas.

Lembro-me da fascinação por filmar aquela aventura. Registrar o momento inédito virara obssessão. Filmei a saída, a subida e colhia depoimentos a torto e a direito até ser alertado:

- Rafael, desliga a luz da câmera porque a gente pode precisar dela.

Andreia tinha razão. A visibilidade não era das melhores, já que, mesmo caminhando sob lua cheia, uma frente fria acabara de se aproximar da região. Assim, concluímos com relativa facilidade a primeira parte da caminhada, da tronqueira (saída) até o terreirão, ponto de apoio e descanso eventual.

Eram onze e meia da noite e o frio, de suportável, já passava a congelante. A visibilidade piorava sensivelmente e Sr.Sérgio achou por bem não permanecermos a noite no terreirão até horas antes do amanhecer.

Encontramos um casal acampado na beira da trilha que levava ao pico. Haviam acabado de tentar uma investida frustrada. Se, na primeira parte, o vale do rio Caparaó era generoso com marinheiros de primeira viagem, na segunda nem tanto. A subida ficava íngreme e se confundia com bifurcações criadas para as mulas que levavam bagagem de turistas que preferiam subir sem peso nas costas.

FIzemos uma rápida avaliação. Valia a pena prosseguir? Era um sete de setembro, e nada mais simbólico do que atingir o pico da bandeira no dia da independência, mas não dava para ignorar as condições extremas - para não dizer perigosas - que teríamos de enfrentar nas duas horas e meia de caminhada até o cume.

Decidimos ir com o casal. Subiríamos até bem perto do pico e esperaríamos mais uma hora e meia no máximo para ver o amanhecer. A operação de risco punha em xeque nossa resistência física e psicológica. Os recursos eram cada vez mais escassos. Algumas lanternas não funcionavam mais, outras iluminavam precariamente e, após caminharmos mais uma hora e meia, paramos.

Parar no meio de uma trilha é uma decisão complexa. Mexe com o emocional do grupo, normalmente já desgastado, além de por à prova a liderança do comandante do grupo, no caso o Sr.Sérgio. Numa lição de humildade e desprendimento surpreendente, ele suspirou por alguns segundos e confessou:

- Nos perdemos.

Pediu que reavaliássemos juntos a decisão de subir naquelas condições. Certamente, naquele momento, falava a voz da experiência de piloto, atividade exaustivamente praticada por Sérgio na Marinha. Só que retornar ao terreirão também não seria fácil àquela altura. Há muito havíamos perdido o ponto de referência.

Toda câmera que se preza é feita para filmar, mas o que isso importava às 2h30 daquele sábado com neblina e rajadas de vento? Tínhamos a opção de guardar a recordação do que viesse a acontecer em nossas memórias ou filmar o que restasse de viagem, gastando mais bateria do que a luz demandava e, quem sabe, virar capa do noticiário caparaoense no dia seguinte.

Por isso, decidimos que a câmera seria, junto com a lanterna profissional de Sérgio, a luz de que precisávamos. Subimos uma hora por trilhas absolutamente incertas. Por um momento, Andreia até teve a sensação de reencontrar a trilha, m as a escuridão era tanta que bastou alguns segundos para nos darmos conta de que tamanho esforço havia sido em vão.

- Posição de bivaque, todo mundo!

A ordem de comando de Sr.Sérgio era impositiva. Nunca havia ouvido aquela expressão antes, aliás, nunca havia ouvido Sérgio falar daquela maneira antes, mas pelo frio que fazia, pela impossibilidade de continuarmos a caminhada e já sem a luz de apoio da câmera, imaginei se tratar de um procedimento emergencial. Significava termos de procurar um ponto de apoio no desnível entre uma pedra e outra, de modo que a de cima funcionasse como barreira contra o vento gelado. Caminhando em círculo há meia hora por um platô descampado, demoramos mais de meia hora para nos espremermos (ou inventarmos?) num pequeno desnível e nos viramos para pregar os olhos. No que restava daquela noite de incertezas, a única resposta era que não veríamos o amanhecer do Pico da Bandeira.

O relógio, uma das raras coisas que ainda funcionavam àquela altura, marcava 7h30. Sérgio nos acordou informando que precisávamos descer. A neblina ainda estava forte, a visibilidade nula, mas, ao menos, a claridade nos dava alento de que resolveríamos o dilema em alguns minutos. Uma hora mais tarde, céu nublado, porém com visibilidade suficiente para descer. Chegamos a pensar se valia a pena continuar a caminhada, já que era dia e reencontráramos um ponto de referência. Mas Sérgio interveio novamente. Pediu que fôssemos pacientes e reconhecêssemos que aquela não havia sido a nossa vez.

Foi inevitável a frustração, especialmente para quem nunca havia feito uma trilha. Mas se não pude chegar ao destino, aprendi definitivamente a lição. Muitas vezes o próprio caminho é o destino. Quantas vitórias não houve naquela derrota aparente? Superação física, mental, paisagens lindas apreciadas na volta, esperança de que é possível se chegar, mesmo que não quando desejamos. E, pensando bem, isso vale para tudo na vida. Por mais que nosso desejo aponte de forma segura e determinada para um ponto que chega a tocar o céu de tão alto, quando perdemos agora, não perdemos para sempre.

Em tempo, chegaria ao Pico da Bandeira no ano seguinte. Mas essa é uma outra história...

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Renato, o Destino e o Brasil

Corpo fechado, gol benzido, nada passa por Fernando Henrique. O que se esconde em cada um dos 90 minutos de agonia tricolor, de um time que pouco ataca e se arrisca na iminência de morte por detrás da linha média?

Abril despedaçado. Retirado subitamente do Vasco de Romário, Eurico Miranda e São Januário, o gaúcho mais carioca do país troca o suntuoso projeto dos 1.000 gols pela modesta ambição de voltar à casa. Acolhido generosamente pela torcida, lá estava mais um personagem do vergonhoso rebaixamento triplo em 96, 97 e 98. Jogador e aprendiz de técnico na ocasião, Renato deixara as Laranjeiras com uma dívida impagável.

Um dia, precisaria voltar. Tinha de prestar contas com o destino. Obrigava-lhe o futebol que a moral desnuda vestisse o fardo de três cores. Um clube que via o presente ruir junto com os vitrais de sua sede a cada novo vexame. Perdia o Fluminense que clamava por Renato.

De repente, lá está o Portaluppi. E onde está o tricolor cambaleante do primeiro semestre, incapaz sequer de passar às semifinais de turno no campeonato local? Aquele Fluminense pálido e minúsculo parece ficar num passado que nenhum torcedor deseja se lembrar. Empate com gols aqui, vitória magra acolá, segue o tricolor com o regulamento debaixo do braço.

Quando acordam, lá está o Flu. Algum time arrebatador? Não. Falível, frágil mesmo. Mas é para ser 2007 o ano da Copa do Brasil. Ou alguém ousa dizer, por exemplo, que esse time é melhor do que o vice-campeão de 2005? Aquele não era para ser, não estava escrito. Não tinha encanto.

Esse não joga. Arrasta-se animado senão por um destino moribundo a clamar Renato. Maior do que o presidente Horcades, maior do que o patrocinador extravagante, maior que qualquer campeonato vencido, lamentado ou expurgado. Maior do que Ivos, Paulos ou Joéis. Maior que Albertos, Dias ou as 17 contratações da diretoria.

De repente, Santa Catarina. Santo destino! Lá estavam Fluminense, Figueirense, Renato e a dívida histórica. Lá no Rio Grande, em 92, com um gol de pênalti inexistente, o Fluminense deixava escapar seu primeiro título da Copa do Brasil. Talvez por isso – e pela impossibilidade de uma revanche contra o Inter, que disputava a Libertadores – quis o destino que o título tricolor viesse exatamente do sul.

Em Florianópolis, nada passa por Roger, Thiago Silva e o Destino. Nada rompe a linha de zaga da história, que escreve, a cada segundo de resistência, uma declaração de amor a Renato. Com as mãos no rosto, o gaúcho chora o apito final. Santo reconhecimento do tempo! Agora sim, ele pode deixar a cabeça cair sobre o travesseiro e dizer: paguei minha dívida com o futebol.

Para acordar no dia seguinte e ver a imensa torcida tricolor novamente grata por sua existência.

terça-feira, 15 de maio de 2007

Obra de igreja

Acabo de voltar do Centro de Pentatlo Moderno em Deodoro. É de entristecer. Reboco para todo lado, tratores dividindo espaços com atletas, lama, muita lama, poças d˙água, nenhuma lanchonete ou restaurante, banheiros químicos interditados, enfim, vestiário masculino de Maracanã ganha de goleada.

Antes de tudo, fico triste como cidadão. Percebo que, a 60 dias da abertura dos Jogos Pan-Americanos, cada instalação se resume a um grande canteiro de obras. Tudo isso às custas do meu dinheiro. Do seu dinheiro, da nossa confiança depositada nesse projeto tocado por gente da mais absoluta confiança. Onde estamos errando? Vamos continuar tapando o sol com a peneira e fingir que nada está acontecendo?

Sei que sobram perguntas e um certo desapontamento ao léu. Mas o espaço agora é para desabafo. Há um mês, este profissional que vos fala é funcionário do Comitê Organizador dos Jogos. Sou pago com o seu dinheiro. E pago para não fazer nada.

Me desaponta porque também me formei às custas do seu dinheiro numa faculdade pública. Talvez por isso, sempre procurei valorizar cada minuto, cada matéria, cada linha da profissão de jornalista. Trabalho demais, faço além do que me pedem, me prejudico às vezes, confesso. Mas faço com a consciência de estar, antes de tudo, cumprindo um dever cívico. Prestação de contas de um cidadão com sua sociedade. De um comunicador com o seu dever.

E fico pensando: onde está parando esse dinheiro que recolhem de impostos? Onde estão os IPTUs, as taxas estaduais e municipais diversas? Estejam certos: em Deodoro não estão. Por lá, apenas operários correndo contra o tempo para finalizar uma obra que, se não era para estar pronta a essa altura, ao menos já deveria estar na fase de retoques finais. Antes Deodoro fosse exceção. Duro é constatar que é assim em 70% dos locais de prova.

Por outro lado, não deveria me surpreender tanto, afinal eu mesmo, após um mês e alguns dias de trabalho, fui não mais do que 10 dias descontinuados à sede do COB. A culpa não é de quem me contratou. A culpa não é minha nem sua, mas de quem prometeu o que não poderia cumprir.

Li semana retrasada que Guadalajara prepara um Pan bem mais modesto que o nosso para 2011. Estão certos. Dinheiro e patrocínios não faltariam para prometerem um evento suntuoso. Mas o que ganhariam com isso? Status? Para quê? O que a cidade deixaria de legado para cada mexicano?

A cada dia me convenço de que o Pan nasceu fracassado em sua concepção política. Interesses dos mais diversos estavam em jogo quando o Rio lançou candidatura e venceu a cidade de San Antonio, nos Estados Unidos. César Maia, o prefeito, estava ávido por uma argumento que consolidasse sua imagem de estadista realizador. O capacete do Pereira Passos redivivo parece cheirar cimento. Nada melhor então, do que gerar emprego às custas de obras faraônicas.

As empreiteiras devem ter dado pulos de alegria. Obras aos montes para se candidatarem, aqueles mega-acordos de sempre (como o da obra do Metrô de São Paulo), enfim... Do outro lado o pobre do Nuzman, uma grande pessoa, mas que fez do Brasil Olímpico uma obssessão. Luta contra estatísticas, esbraveja contra fatos evidentes como a violência, estrutura de transporte precário, falta de infra-estrutura urbanística, e por aí vai.

A mídia também compra a idéia, e o faz com o gosto. A principal organização do país na área fecha um pacto tácito de não falar mal da (des) organização, da falta de transparência nos prazos e execuções, no amadorismo da gestão de problemas como a Marina da Glória e do Estádio de Remo da Lagoa. Do outro lado, promessa de exclusividade na transmissão dos eventos e aceno com a possibilidade (praticamente) real de ser a emissora geradora do sinal dos Jogos para o mundo.

Mas de repente a coisa vai ficando tão desorganizada que essa empresa nem ganha a exclusividade nem o direito de ser a "host broadcast". Mesmo assim, os dias avançam mais rapidamente do que as obras e o Pan continua a ser tratado como sol, sempre disposto a exalar brilho.

Ainda há tempo para mudar? Sinceramente, a essa altura acho difícil. Ao menos, creio que deva restar um mínimo de dignidade para não nos acovardarmos por detrás de empresas ou do discurso simplista de que "é assim mesmo, se eu espernear não adianta nada...". A situação exige uma postura, no mínimo, crítica a tudo o que se passa. A começar por quem deveria comunicar com isenção e compromisso social. Honestamente, não é o que tenho visto por aí. Estou incomodado. Muito. E não sei até quando vou querer conviver com essa omissão.

domingo, 13 de maio de 2007

Papas na língua

Quem acordou cedo neste domingo para torcer por Felipe Massa no GP da Espanha de Fórmula 1 se frustrou. Justamente quando o brasileiro liderava, a poucas voltas do fim, a Rede Globo acabou com a diversão. Pudera, missa é coisa séria.

Ainda mais se rezada pela entidade máxima do catolicismo. Ainda mais no Brasil. Ainda mais numa emissora católica. Ainda mais numa emissora católica que faz questão de prestar contas de seu catolicismo.

Li e vi muita gente revoltada com a atitude da emissora. Por isso, gostaria de entender junto com os amigos o que a levou a tomar tal decisão. Frustrante ou não, é mais ou menos assim que funciona.

Antes de saírem atirando pedras na Globo, é bom que se saiba: a rede carioca se dispôs a pagar uma grana boa quando tirou do ar o GP da Espanha ao vivo. Isso porque tem direito de exclusividade para corridas de Fórmula 1. Nisso o mercado é implacável: quem deseja exclusividade tem de pagar milhões anualmente na aquisição de cotas antecipadas.

Afora isso, as letras do contrato são muito claras e determinam que a empresa faça jus ao direito de transmissão exclusiva. Significa dizer que, se não quiser passar um trecho da prova que seja, o bolso vai doer.

E a Santa Missa? Nada. Nenhum direito de exclusividade, nenhuma grana para o episcopado do Vaticano. Então a Globo bancou jogar dinheiro pelo ralo apenas em nome de seu status católico? Definitivamente, não.

O raciocínio é simples. A multa pela não transmissão da Fórmula 1 é alta, porém fixada. Já a audiência obtida numa missa papal é incalculavelmente maior. Incalculavelmente porque traz para a frente da TV pessoas que normalmente não estariam lá num domingo de manhã. Na linguagem marqueteira, não fazem parte do público-alvo do horário. O público de domingo de manhã é mesmo do esporte, não tem jeito. A não ser que até o Papa resolva baixar no Brasil. Pois é, aí acontece uma dispersão qualitativa desse público-alvo.

Em resumo, a velhinha, a dona-de-casa, o executivo, o jovem, enfim, uma mistura de categorias que dificilmente veriam um mesmo programa num mesmo horário excepcionalmente tornam-se uma audiência em potencial. Torna-se irresistível para a emissora não querer angariar espectadores tão diversos para consumir seu conteúdo matutino dominical.

Pode até ser que a visita papal não renda aos cofres da empresa lucro acordado em contrato, mas gera muita grana indiretamente. Primeiro com os patrocinadores que por acaso desejem anunciar antes e depois da missa. E, ainda que não haja anunciantes durante a missa, por diretrizes éticas da emissora, qualquer evento para o qual ela "entregue" entrará no ar repleto de audiência. Como sabemos, na equação comercial das redes de TV, audiência é igual a dinheiro. Muito dinheiro, diga-se de passagem.

Há também uma questão importante de status. Grandes eventos são uma janela para o fortalecimento da marca da emissora. No caso, a marca em questão é institucional. A Globo vê na cobertura da agenda do Papa grande oportunidade de reafirmar seu posicionamento ao lado dos católicos. Ainda que o Brasil seja um Estado laico, tem no catolicismo a religião de maior aceitação, com larga margem de vantagem para a Igreja Evangélica, que vem a seguir.

Por isso, não é exagero dizer que a Globo até aceitou perder dinheiro para transmitir a Santa Missa. Vale o sacrifício em prol do vínculo de confiança com sua audiência. Mesmo que os fãs de esporte e de Felipe Massa chiem, não é exagero dizer que fazem mais barulho do que número. São parte já fidelizada da audiência, forjada em anos de Emerson, Piquet, Prost, Senna e Schumacher. Eles não vão deixar de acompanhar as próximas corridas, ainda que com uma ponta de ressentimento. Nada que uma nova vitória de Massa ou o Tema da Vitória não apaguem.

Já o Papa voltará para o Vaticano. E por aqui, o que ficará? Sempre que os milhões de fiéis ameaçarem se esquecer, virão à cabeça - ou dos arquivos da própria emissora - as imagens de Sua Santidade captadas pelas lentes da Rede Globo de Televisão.

Num domingo que respirou Massa e Missa, o placar final ficou assim: Felipe 10 x Bento 16.

domingo, 6 de maio de 2007

Exatidão imponderável

A certa altura do jogo, o narrador pergunta ao experiente comentarista: o que vale mais em uma decisão é a raça ou a técnica? E ouve que além delas duas é preciso ter sorte. Na mosca.

A predestinação não é medida por códigos de esquemas táticos. Ela dá o ar da graça nas três letras mágicas que até hoje, tornam o futebol um esporte único. Quem paga o ingresso jamais sabe quem vai vencer, mas tem a certeza de que os louros vão parar sempre do lado de quem faz gol e sabe como evitá-los.

Muito se cantou o mantra numérico do futebol moderno nas últimas semanas. O Flamengo iria de 3-6-1 contra o falso 4-4-2 alvinegro, que evolui para um móvel 3-5-2 que, dependendo do ponto de vista, pode ser lido como um ousado 3-4-3. Pois a decisão do Campeonato Carioca acaba de botar por terra qualquer divagação extracampo. Venceu quem pôs mais vezes a bola dentro da rede. Simples assim.

O Botafogo foi superior ao Flamengo nas duas partidas da decisão do Carioca. E daí? Fez quatro gols, tomou outros quatro, e levou mais quatro nos pênaltis. Assim, o alvinegro deixou o Maracanã ostentando uma invencibilidade invejável no estádio e, ironicamente, não levou a taça para General Severiano.

Cuca fez palestras motivacionais, chamou os jogadores do Bota à responsabilidade e ao brio. Arrancou lágrimas de funcionários e atletas, fez uma oração forte antes da entrada em campo. Orientou o time para que não errasse passes, a defesa para que marcasse a jogada, não a bola. O Alvinegro seguiu a cartilha à risca. Jogou como sempre. Perdeu como nunca.

O código da predestinação rubro-negra começa na primeira partida da decisão, quando, vencendo po 2 a 0, a zaga alvinegra sai pedindo impedimento e obriga Júlio César a tomar uma atitude condizente com sua inexperiência. Faz pênalti, é expulso e deixa o instável Max em uma roubada.

O segundo gol rubro-negro sai das mãos justamente de Max, como que se negasse setenta vezes sete a qualidade técnica do Botafogo. Até então, nem o mais otimista dos rubro-negros acreditaria na virada. Após Max, ficou claro que Deus estava sentado à esquerda da tribuna de imprensa do Maracanã.

Ou não seria possível explicar o arroubo de competência do Flamengo. Chegou pouco ao gol de Max, desta vez mais protegido e, em quatro chances claras, aproveitou duas. Uma delas, por exemplo, veio dos pés de Renato Augusto, que cansou a torcida de tanto perder gols ao longo da competição. Por isso, não é exagero dizer que aquele gol foi forjado com mãos divinas.

O gol anulado de Dodô, Zé Roberto fora, Bruno e Leo Moura ligadíssimos, a torcida rubro-negra aplaudindo até lateral davam as pistas cabais de que a tarde seria, de fato, vermelho e preta. Quando Djalma Beltrami pediu a bola ao fim do jogo, até o mais otimista dos pessimistas alvinegros sabia que o manequinho tinha ido pro brejo.

Encantador, o Botafogo se despede do Carioca 2007 com o artilheiro, o melhor futebol, a equipe que mais venceu, o time que mais fez gols, o que perdeu menos jogos, somou mais pontos, encheu os olhos da torcida e dos comentaristas, etc, etc,etc... O Flamengo vai embora sem o melhor futebol, sem artilheiro, sem Obina, sem Juninho, praticamente sem rumo para a Libertadores. Mas com o título.

E basta perguntar a um torcedor alvinegro se ele venderia a alma lustrosa de seu time só para ter o gostinho de dizer que é campeão. Ou indagar ao rubro-negro se ele liga de sequer ter vencido o Botafogo no campeonato. A resposta se encontra em algum lugar entre o insignificante "não podes perder" alvinegro e o majestoso "vencer, vencer, vencer" cantado em verso e prosa na Gávea mais feliz do Rio de Janeiro.

sexta-feira, 4 de maio de 2007

Peixes fora d'água


Enquanto os organizadores do Pan-americano comemoram o sucesso de vendas para as provas de natação, são justamente as estrelas do espetáculo que têm motivo para reclamar. Ao fim das provas válidas pelo Troféu Maria Lenk de natação, as vozes dos classificados para o maior evento das Américas são uníssonas ao dividir a alegria da vaga com a decepção de não poder ver seus familiares nas arquibancadas.

A história contada é sempre a mesma: pais, esposas, maridos e amigos tentam o dia todo, viram a madrugada em busca de entradas mas, infelizmente, não conseguem. Todos os ingressos já estão esgotados.

Nada de muito alarmante se as entradas tivessem, de fato, sido compradas. Que foram vendidas todos já sabem, mas há uma contradição virtual que as vendas pela Internet mascaram: boa parte delas não foi parar nas mãos de compradores reais.

São os próprios atletas que denunciam, num tom que beira a ingenuidade: ficaram nas mãos dos cambistas. Resumindo, haverá ingresso para quem resolver molhar a mão dos atravessadores. Os que tentarem o caminho da legalidade ficarão a ver navios. Melhor, não verão é nada.

Curioso ouvir dos classificados, candidatos a heróis das piscinas do Pan, a mesma história: ainda têm esperança de que seus parentes vejam as provas, pois haverá bilhetes nas mãos dos cambistas. Não é mentira, amigos. Este que vos fala ouviu de, pelo menos, três deles. Isso no calor da conquista, logo após saírem da piscina.

O que o comitê organizador dos jogos deve achar disso? É verdade que não podem coibir a ação de cambistas por completo, afinal até nas Copas do Mundo e Olimpíadas eles fazem a festa. Tampouco são capazes de criar vagas que não vão existir no Complexo da Natação, em Jacarepaguá. O que podem - e devem - é garantir aos pais e familiares próximos dos atletas lugar cativo nas tribunas vips, espaços reservados aos presidentes de federações e confederações, além de personalidades influentes no esporte e na política.

Porque vai pegar muito mal para a imagem da organização ouvir da boca dos próprios atletas que eles não puderam comemorar a vitória com seus parentes in loco, enquanto os vendedores de última hora se deliciam na farra da agiotagem e vão dormir com o bolso cheio de dinheiro em uma festa que, definitivamente, não foi preparada por eles nem para eles.

Nana, neném...

A música mais sinistra que ouvi em minha existência perfurou meus orifícios auriculares pouco depois de nascer. "Nana, neném / Que a Cuca vem pegar / Papai foi pra roça e mamãe foi trabalhar".

Ora bolas! Quem é Cuca? Por que esta criatura vem pegar o pobre do neném indefeso? E o que fazer sob o gesto hipnótico e cínico da mamãe quando o pai e a mãe se foram (aliás, se a mãe se foi, quem é este vulto que fala comigo?)? Sem estrutura física nem arcabouço psicológico adequado para me defender, só me restava dormir.

Nunca soube quem era Cuca. Sempre
achei que fosse um monstro pronto a me devorar ao abrir os olhos. Por isso, encarava as escadas de olhos fechados, desbravando os ambientes na base da expertise tátil. Isso até, vinte e tantos anos depois, ele cair de pára-quedas no meu time como treinador. Pesquisei daqui e dali para descobrir que meu novo guru tinha um incômodo estigma: era um perdedor nato.

Na verdade, ao me deparar com o Cuca que me apresentaram, cheguei até a nutrir certa empatia por ele. Descobri que se tratava de um sujeito normal, simpático, só que um pouco cheio de nóias para o meu gosto.

Quando os microfones se aproximavam dele, fazia caras e bocas, como se lhe estivessem apresentando metralhadoras prontas a fuzilá-lo. Mas que decepção! Meu algoz infantil tremia diante de adversários inofensivos... Precisaria ele de um divã?

Pois puseram um urubu monstruoso para meu pobre comandante abater!

Então, lá foi Cuca, terror do passado e candidato a herói do presente para sua missão quixotesca: botar fogo num gigante urubu falastrão. Exército listrado a postos, véspera da batalha decisiva, começa o bravo comandante a falar: olha... bom... você, aí (apontando o indicador com a mão direita, enquanto coça a nuca com a mão esquerda franzindo a testa) Zé, você acompanha o Léo. Alessandro, não deixa o Juan jogar. Lúcio, faz o de sempre e... que vença o melhor... bom, que sejamos nós os melhores... Vamos tentar, combinado?

A fisionomia dos comandados é tensa. Todos se entreolham eivados de desconfiança e sobem as escadas que dão para a arena. Hora de decidir! E nada sai como o esperado...

O urubu falastrão se agiganta e não pára de falar. Dá dois vôos rasantes e mortais. O exército listrado se entreolha novamente e não sabe o que fazer.
Sob os olhares de Cuca, sem papai nem mamãe para socorrer, é matar ou morrer. O que fazer? Chorar e nanar, que a Cuca não é de nada, e urubu que é bom, ninguém sabe matar.

quinta-feira, 3 de maio de 2007

Tapar o sol com o sombrero


Acabo de assistir a Diários de Motocicleta. Para quem não viu até hoje (caso deste que vos fala - o filme é de 2004!), o filme de Walter Salles narra a aventura de Ernesto "Che" Guevara pelas estradas e povoados da Argentina, Chile, Colômbia, Venezuela e Peru. Isso antes de fazer a revolução em Cuba, diga-se de passagem.

Um dos grandes momentos da história se dá quando Che faz um discurso de improviso. Diz que a América é uma só, do estreito de Magalhães (sul da Argentina) ao México.

Lembrei-me do regulamento da Libertadores da América, que segrega as equipes mexicanas. Caso uma delas chegue à final contra times de outros países, rezam as letras tortas da Conmebol que devem jogar a decisão fora de casa. A Confederação Sul-Americana alega que os mexicanos são convidados - e nisso tem razão -, proibindo, inclusive, que um mexicano garanta vaga no Mundial de Clubes da Fifa caso vença o torneio.

Apesar de o nome sugerir a integração das Américas, o torneio foi feito apenas para os sul-americanos. Acontece que, não é de hoje, nossos hermanos do norte estão isolados no futebol do continente. Jogam um futebol redondo demais para disputarem com as babas da América Central e do Norte. A solução tem sido o improviso político, a despeito da aberração geográfica. Há 15 anos disputam regularmente as competições entre seleções organizadas para países daqui. Mais do que isso: invariavelmente chegam às finais.

A última copa Sul-Americana foi vencida pelo Pachuca, do México. Pela primeira vez um time mexicano melou a festa dos anfitriões do Cone Sul. E ameaçam repetir o estrago. Esse ano, todas as equipes deles inscritas na Libertadores avançaram à segunda fase, feito que nem brasileiros nem argentinos conseguiram. Será que não é hora de acabar com a hipocrisia e chamar de vez os falsos penetras para a festa?

A Austrália cansou de bater nos irmãos mais fracos da Oceania e pediu desfiliação da confederação de lá. Com o aval da Fifa e uma boa dose de bom-senso se juntaram às seleções da Ásia. Desde o ano passado, disputam as eliminatórias para a Copa contra equipes asiáticas, o mesmo valendo para os torneios interclubes. Nada mais justo.

Como a Fifa lava as mãos para a questão, o jeito seria esperar a boa vontade mexicana. Só que isso significaria jogarem fora a vaga mais fácil para a Copa, já que disputam a chance de ir ao mundial com gigantes do futebol como Trinidad & Tobago, Jamaica, Costa Rica e Estados Unidos. Por aqui, teriam de medir forças com Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai. Aí o buraco no mapa seria, literalmente, mais embaixo.

Vamos ver, então, até quando o México sustentará o papel da amante latino-americana, sempre disposta a apimentar os torneios daqui. Tudo isso sabendo que, no fim das contas, vai pegar o saco e o sombrero e rumar para o norte, de onde verá hermanos menos competentes ganharem as vagas que lhe são de direito - mas não de fato.