quinta-feira, 23 de maio de 2013

Era apenas um homem


Um dia ela acordou com os olhos distantes e cheios d'água. Acabara de perceber que seu príncipe não passava de uma fantasia. Tratava-se de um homem normal, com erros, acertos, no máximo com uma capacidade inata de cativar, fossem pelas palavras, fossem pelos olhares, fossem pelos gestos.

Ela comprou o príncipe gastando toda a mesada de sua imaginação, pois precisava preencher aquele vazio que a angustiava. Fez-lhe juras de amor, escreveu declarações maiúsculas e tinha a certeza de que, quanto mais se doasse a sua paixão avassaladora, mais perto da felicidade teria chegado.

Descobriu que príncipes não existem quando sentiu o aroma do vinho. Era semelhante ao das uvas e dos sucos que sua mãe preparava para ela com tanto carinho nas refeições. Mas o vinho tinha um toque diferente, especial, meio amadeirado e meio floral, tal qual certos tipos de perfume.

Resolveu conversar sobre isso com sua avó, que a fez sentar-se calmamente à cabeceira de sua larga cama para dizer-lhe: buscas o perfume do vinho em uma uva? Não irás encontrar. É como achar que um quadro é a soma das cores nele impressas ou que um concerto é simplesmente o conjunto dos ritmos ditados por cada instrumentista.

Há uma sabedoria inerente ao vinho, aos quadros, aos perfumes, aos sons e à vida. Se não curtisse no barril de madeira, o vinho seria suco ou, no máximo, vinagre. Se o perfume não tivesse a melhor combinação de aromas, não seria tão marcante, continuou. Se a tinta não secasse, o quadro seria um conjunto de borrões, pois que, transportado para lá e para cá, perderia sua forma e não seria belo como antes.

Sem precisar dizer mais uma palavra, sua avó pediu que dormisse. E, em dormindo, acreditasse mais nos sonhos, que observasse mais o balé suave e harmonioso da vida. Que acreditasse menos no mundo ao redor e em suas imposições. Mas, acima de tudo, que cresse mais nela própria. Naquilo que seu coração lhe dizia nos poucos segundos em que permitia o mundo a sua volta silenciar-se.

Foi quando ela dormiu. E acordou com os olhos marejados e pensamentos distantes pela morte de um príncipe que acabara de perder o encanto.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

De pais e paixões


Muitas vezes me pego de volta ao campinho de terra em Maria Paula. Lá, até hoje faço minhas defesas arrojadas, dribles improváveis, gols e, principalmente, revejo meus amigos. Se, de fato, rumasse para aquelas bandas, encontraria meu sonho consumido por casas que justificam a expansão imobiliária na região e, provavelmente, não encontraria um terço de quem imagino lá estivessem.
Não importa. Uma das frases que aprendi com meu pai é: onde está o seu coração, ali está o seu tesouro. Pois de tempos em tempos vou reivindicar meu quinhão. E descubro que ele se mistura com lembranças de um menino que andava descalço por ruas de terra e fazia da pequena vila um grande autódromo com corridas disputadas de bicicleta num espaço onde mal cabiam carros.
No quarto, o grande estádio da cama, com gol de caixa de sapato, jogadores-pregadores coloridos e um narrador empolgado por brincar de ser Deus e criança em plena adolescência. No campeonato do quarto, manipular resultados não era antiético e o vencedor poderia mudar ao sabor dos gritos de gol fabricados numa fração de segundo.
Marcelo, pai de arquibancada, ensinou-me a torcer pelo Botafogo como um autêntico botafoguense. Nas curvas dos assentos acimentados do Maracanã ou sob o sol niterioense de um Caio Martins, me apaixonei pelo futebol com a mesma intensidade que ele torcia pelo Bota. Ele era daqueles capazes de dizer: não gosto de futebol, gosto é de Botafogo.
Fosse por Marcelo, talvez hoje não seria um jornalista esportivo. No máximo, um dos muitos corneteiros de plantão das arquibancadas. E como seria divertido isso! Gritaria contra o técnico, xingaria o lateral que não cobre, o meia que não sabe passar e o atacante que se cansa de perder gols e provocaria de vez em sempre quem não vestisse o preto e o branco.
Mas havia Francisco, de quem herdei meu segundo nome e meu sobrenome. Austero, comedido, perspicaz, um mineiro cruzeirense que freqüentava a sede do Flu e dizia torcer pelo Botafogo. E torcia, de fato. Não como Marcelo. Meu pai era cerebral, racional, lógico. Perdeu por isso, venceu por aquilo, não merecia vencer, tinha de ganhar...
Tudo levava a crer que meu pai não era um autêntico botafoguense, mas ele revelava sangue alvinegro no pessimismo crônico. Por outro lado, quantas não foram as vezes em que o vi abrir mão de torcer pelo seu time de infância para compartilhar da felicidade dos filhos? Não me lembro de um Cruzeiro x Botafogo sequer que tenha feito seu coração pender para o lado celeste.
Com ele, aprendi a ver rivais mortais apenas como adversários esportivos. E entender que futebol era apenas um jogo. Um balé lindo, eterno, de vencedores e vencidos que se alternam em intensidade e freqüência como num perfeito concerto musical. Perder ou vencer depende do ponto de vista, quem sabe do humor de quem torce... E vi que tinha escolhido o lado dos perdedores só para encher meu coração de alegria nas poucas vezes em que saísse vencedor, a curtir uma alegria permitida a poucos.
Perder deixou de ser doloroso com o passar do tempo, justo por conta do aprendizado que meu pai me deu. Já Marcelo virou uma espécie de termômetro das arquibancadas. Sempre que quero saber como está o alvinegro, recorro a ele,afinal, ninguém vive Botafogo mais intensamente do que meu segundo pai. E quando quero deixar de lado o traje de jornalista para viver o torcedor apaixonado, é ao lado dele que acompanho a missa campal dos domingos.
Se alguém algum dia procurar essa alma alvinegra e não encontrar, tente um dos inúmeros estádios espalhados pelos sonhos de cada torcedor deste planeta. Estarei numa daquelas curvas, a inspirar sempre as letras de quem escolheu o caminho da paixão por contar um esporte que escreve torto por linhas mais tortas ainda.