segunda-feira, 1 de março de 2010

Fraternidade, ainda que tardia

Dos três lemas da Revolução Francesa, a fraternidade é a mais esquecida pelos cantos. Relegada a um segundo plano social, em grande parte das vezes só encontra eco nos salões ocultos da religião ou como um expurgo do sentimento de culpa humana no trato para com seu semelhante.


Parece haver uma polarização irreversível no lidar com a alteridade, que oscila entre a hipocrisia e a conveniência. Diante de um grande tema que ponha em xeque o discurso da supremacia humana, como a violência, a corrupção ou as disparidades sociais, tendemos a pôr a culpa ora na falência das instituições, ora na insolvência do projeto existencial, como se disséssemos que falhamos por natureza e a humanidade é um erro.

A luta pela liberdade é um tópico central da sociedade moderna. Há uma aceitação razoável para com diferenças sociais, fome e epidemias. Até mesmo conflitos armados são tolerados em prol de uma liberdade desejada - mesmo sabendo que, no fundo, ela não será extensiva a todos num nível mais sutil.

Embora a igualdade não goze de semelhante prestígio no imaginário coletivo, ela se expressa normativamente na predominância de regimes laicos e, dentro deles, na universalidade do discurso legal: iguais perante à lei e condenados ao cárcere no seu descumprimento.

Acontece que reconhecer o outro como extensão de nós mesmos ainda é um desafio pouco tangível em uma sociedade que não associa desenvolvimento humano à humanização. O discurso do auxílio ao próximo quase sempre é listado no rol de ações religiosas, relegado a segundo plano ou exageradamente glorificado no campo da pregação fanática, mas raramente visto como uma obrigação civil.

Talvez porque nossa história tenha estratificado o tripé da modernidade. É como se a igualdade necessariamente passasse pela perfeição do projeto de liberdade e a fraternidade não fosse possível num mundo desigual por essência. Quem ajuda aos pobres de maneira privada é assistencialista e só contribui para a manutenção do fosso social. Outros se isentam relegando o papel ao Estado, já que são descontados em seus vencimentos. Isso lembra muito o discurso dos que comem carne dizendo que se comprazem do sofrimento do animal, mas nada vai mudar se deixarem de fazê-lo, então melhor que comam mesmo.

Por outro lado, é curioso que só se entenda fraternidade como ajuda e não um momento cotidiano que raramente sabemos aproveitar. Se podemos criticar a posição do outro na reunião entre amigos, para que elogiar? Se surge a oportunidade de derrubar o companheiro de trabalho pela falha eventual, bobagem ressaltar as características que o tornam bom profissional. No entanto, vivemos nos lamentando quando somos vítimas da inveja e das injustiças do próximo para conosco.

São muitas as oportunidades de exercermos o descontrole do status social, mas raramente optamos por fazê-lo, talvez porque nos sejam mais agradáveis as risadas das hienas à beira da tragédia do que o vôo solo da águia a buscar novos horizontes. Há uma sabedoria inerente ao movimento da discordância, quando é melhor se sentir um peixe fora d'água do que afundar num lago de egos inflados.

A criação de uma sociedade humanamente sustentável começa em pequenos gestos, necessários à naturalização do discurso em prol da alteridade. Sem eles, continuaremos a transferir a culpa pelos insucessos no trato com o próximo às instituições, mal nos dando conta de que não há sociedade igualitária nem liberta sem a prática ampla, geral e irrestrita da fraternidade.

E amar o próximo não parece assim tão complicado.