quinta-feira, 29 de março de 2007

Texto surrado!

O último tópico rendeu polêmica. Era pra ser assim, mesmo. Afinal, as vozes estavam muito uníssonas com relação ao episódio do pai que bateu na filha durante o mundial de esportes aquáticos, na Austrália. Hora, então, de reservarmos o papiro para as críticas ao texto.

"Não é todo mundo que sai por aí batendo em uma criança e quem faz não está certo. Por isso as cenas devem ser mostradas, para chocar mesmo ou pelo menos sensibilizar os que fazem isso ou já pensaram em fazer ou fariam um dia quem sabe, para que vejam de fora o tamanho da brutalidade."

Renato Nogueira e Marcelo Barreto, companheiros de profissão, vão no mesmo caminho da Gabi:

"se uma câmera me perseguisse, o tempo todo, a única agressão que gravaria seria a sofrida por ela mesma, para deixar de ser chata.", diz Renato.

"Uma coisa importante que qualquer comentarista precisa ter em mente é a preocupação de abordar todos os aspectos de um mesmo tema. Não dá pra só querer falar de um."

Barreto foi no ponto crucial. O texto abordou um lado da questão e acabou dando a impressão de que o outro não era assim tão importante.

Já havia postado sobre o problema da violência em dois tópicos anteriores. "A violência é um problema ecológico" diz:

"essa incapacidade de reagir à violência social é sintomática e revela o quão dissociados estamos da dimensão do outro como extensão de nós mesmos. Se não conseguimos ser exatamente indiferentes ao sofrimento alheio, elegemos a hipocrisia ou a conveniência."

Em outro texto, "Nós da violência", reitero: "Se vivemos num país em que mais de 90% da população recebe informações via televisão, se reconhecemos que somos, de fato, produtores e formadores de opinião e educadores, por que não direcionarmos nosso olhar e nossa linguagem para a reeducação de nossa audiência?"

Aí está: a violência tem de ser mostrada para que reeduquemos nosso olhar sobre a sociedade. Só não podemos perder a oportunidade de dizer que a hipocrisia também é uma forma silenciosa de violência, só que esta ao bom-senso.

quarta-feira, 28 de março de 2007

Romário dignifica o 1.000

Pouco importa se as contas são do Romário, da Fifa ou do raio que o parta. O milésimo gol do Baixinho nada tem a ver com os 999 anteriores. O onze ressucitou o mil, ainda que alguns não queiram dar a menor bola para isso.

Primeiro foi o Plano Real, que acabou com a brincadeira sinistra de pôr e tirar três zeros da moeda. Inflação controlada, tudo passou a ser na casa do um, dez, cem e... ponto! Quem conhecer uma nota de mil reais que atire a primeira pedra. Mas parem para pensar em quantos milhões de dólares cabem em uma maleta. Alguém esconde milhares de verdinhas em uma cueca, ainda que isso atente contra as leis da física? Definitivamente, não. As falcatruas são
sempre na casa do milhão pra cima ou do milhar para baixo, dependendo da situação financeira ou da largura da cueca do cidadão. Aliás, alguém se lembra do milhar? Antes, era sinônimo de dinheiro fácil. Hoje, cheira contravenção das brabas!


Não bastasse ser sumariamente retirado das conversas de botequim, o mil caiu em desuso também na indústria automobilística. Carros econômicos de mil cilindradas, carinhosamente chamados de '1.000', mudaram a alcunha para 'um ponto zero' - veículos ótimos para o bolso e desastosos para a perpetuação dos três zeros.

O último dos milhares que resistia bravamente na cultura prosaica virou sinônimo de ultrapassado. Tente dizer daqui a alguns anos que você nasceu em mil novecentos e alguma coisa. Vai ser tratado como um fóssil ambulante. Hoje é assim: quem ousar resistir ao novo milênio cheira mofo. Até os chefes supremos sucumbiram à queda do mil: o Papa mudou, Saddam morreu, o maior edifício do mundo caiu e nem a milenar sabedoria oriental
resistiu ao choque de civilizações.

Vai ver por isso a massa cinzenta de muita gente anda se revirando na caixa craniana quando vê aquele sujeito marrento, de metro e meio, que tem o número de sua camisa imortalizado num clube governado despoticamente, e ainda por cima reivindica a audácia de ter os gols registrados em seu... caderninho! Quer coisa mais antiquada do que um senhor de 41 anos querendo reinventar o 1.000 na base da caneta?

Dizer que Romário desafia o tempo soa lugar comum. Digamos então que o Baixinho faz o tempo parecer um detalhe. Com a mesma habilidade que trata a bola dentro da área, faz zagueiros pararem, o tempo congelar e a idade não avançar.

O incômodo com Romário vem da desenfreada sociedade de consumo, diriam os velhinhos da Sorbonne. O problema é que nem eles estão aí para contar história. É mais fácil então pôr a culpa nos números. Os mesmos que derrubam ministros, edifícios e treinadores são os responsáveis pela depreciação da proeza de Romário de Souza Faria. Faltam às contas do jogador a precisão de seus chutes? Problema do milhar. Ou alguém vai negar que há uma atração milenar entre Romário e as redes?

Mas o futebol moderno são outros quinhentos. Imagina se, em pleno século XXI, um estádio repleto de torcedores adversários aplaudiria Pelé, por exemplo? No mínimo, fariam comunidades virtuais hostilizando o Rei, dizendo que ele só bate em galinha morta. Bom se ele balançasse as redes daquele time da Liga de Netuno que tem um goleiro tcheco...

No fundo, no fundo, o que mais incomoda o planeta de misérias e milhões é ver aparecer um gênio do século XX que ousa dar brilho à sutileza intermediária de um milésimo em desuso.

O destino é de papel

É provável que o Maracanã não veja mais uma exibição como aquela de Waldirgly Bezerra Lima. Consagrado Valdir pela simplicidade de nosso léxico e destruído pelo imediatismo de nossa cultura, o atacante ainda não consegue realizar o solo executado em três cores diante de um perplexo estádio alvinegro.

Há pouco menos de um ano, naquele mesmo palco, Valdir vira um sonho se transformar em papel picado. A falta desleal, quase ingênua, o rebaixara à categoria dos humanos que não sabem errar. O cartão vermelho sacado impiedosamente pelo árbitro consumou o inferno astral de Valdir.

Maior do Mundo pelo simbolismo, o estádio Jornalista Mário Filho não merecia aquele espírito pobre na grande final entre Vasco e Flamengo. Como o time da distinta colônia portuguesa também não poderia tolerar tal insanidade - ainda mais numa partida contra o maior rival -, Valdir saiu de cena. Demitido, vagou durante seis meses por uma consciência atordoada, aguardando pacientemente que o destino lhe ofertasse outro papel.



Nessa quarta, ele teve de decidir. Acossado pelo zagueiro botafoguense, e diante do goleiro que crescia a cada décimo de segundo, o agora atacante do Madureira resolveu arriscar. Raspou a bola sutilmente, esperando que, ao tocá-la por cima do adversário, pudesse também encobrir o passado. Um instante mais tarde, corria contra o vento para abraçar o destino e celebrar uma dádiva concedida a poucos: a chance de reescrever, no mesmo solo do fracasso, a vitória incontestável sobre o destino.


O próprio Valdir sabe melhor do que ninguém: dificilmente jogará como ontem. É o que menos importa. O presente desse cearense agora está embrulhado em papel reluzente - talvez frágil. Mas o que mesmo é firme no esporte jogado sobre esse solo intempestivo forrado de grama?
***
Abaixo, os melhores momentos de Botafogo 2 x 2 Madureira, pela primeira rodada do Grupo A da Taça Guanabara de 2007. As imagens são do canal a cabo Sportv e a narração de Roby Porto, com reportagem de Kiko Menezes.

Briga de juízes tira a vitória do Brasil

Está nos jornais: o Brasil empatou com o Chile no sul-americano para jogadores até 20 anos e ficou distante dos Jogos Olímpicos de Pequim. Dois pênaltis contra nós e uma expulsão deixaram todo mundo furioso com o distinto senhor Albert Duarte, do Equador. Fomos roubados na cara-dura! O que Nélson Rodrigues diria?

Pois não disse. O técnico brasileiro, homônimo mal-acabado do famoso cronista, ficou olhando o Brasil tomar um passeio dos chilenos e certamente agradeceu a São Cássio, canonizado cada vez que voava nos pés de um atacante adversário para impedir o pior. Mas não é que o Homem estava muito disposto a ajudar o escrete canarinho?

Se não estivesse, como explicar o gol achado de Alexandre Pato quando sofríamos ataques sucessivos a nossa retaguarda? Só que o ilustre juiz parecia determinado a roubar do Mestre o papel principal. Inconformado com tamanha injustiça, o equatoriano arranjou um pênalti sem-vergonha para o Chile lá pelos 39 da etapa final. Vidal, que não tinha nada com essa confusão de egos, cobrou sem cerimônia e igualou o placar.



Mas, ah de quem quisesse mexer com o Homem! O arroubo de honestidade terrena do senhor Duarte foi o bastante para arruinar a paz celestial, de modo que o Cara resolveu tomar para si a briga. Tanto trabalho para fazer um time tão sem alma botar a bola lá dentro...

Furioso, Ele não pensou duas vezes: tirou Tchô do banco de reservas e jogou como um raio na área chilena. O recém-promovido se viu obrigado a pegar o chute de Amaral e marcar o gol brasileiro. Quarenta minutos do segundo tempo, tudo resolvido, pensou.

Ledo engano. 'Ele pode mandar lá em cima, mas aqui no campo decido eu', cravou Albert. Sacou impunemente o apito e assassinou a regra 14: perigo de gol na área brasileira, pênalti para o Chile executar. Àquela altura, até o pobre do Vidal, que não tinha nada, mas absolutamente nada com a briga dos juízes, já tinha carma para pagar até a oitava geração. Quem mandou fazer o segundo gol? O pior é que, com 50 minutos de bola rolando, nem dava tempo de fazer mais nada.

Tem problema não, seu Albert. Pode esperar sentado para ver seu paisinho ir à Copa outra vez. E tenho dito!

***
Abaixo, você vê como foi Brasil 2 x 2 Chile, pela quarta rodada da primeira fase do Sul-Americano sub-20, disputado no Paraguai em fevereiro. As imagens são da ESPN Brasil.

O dia em que O Mestre (quase) falhou

Pelo jeito quiseram os deuses do futebol ajudar novamente os quatro cariocas em uma mesma rodada, mas se esqueceram de um detalhe: havia um confronto direto entre dois deles.

Após constatar que o Botafogo estava vencendo uma equipe do Rio por imprudência dos terráquios, o Mestre tratou de arrumar as coisas para virar o jogo.
Botou na cabeça do cauteloso técnico alvinegro que seria preciso sacar o lateral-esquerdo no intervalo, pois o atleta estava pendurado e outro cartão seria fatal. Foi a senha pra agir sobre o reserva da posição que, contundido, saiu minutos depois sem ver sequer a cor da redonda. Aberta a avenida naquele setor ordenou o Mestre: ataquem pela direita e a Justiça Divina será cumprida!
Então, inspirou a prancheta mágica do velho Natalino, que tratou de fazer a manobra tática. Mas como perdia gols aquele ataque! E como deixava a desejar a defesa!

Eis que o mestre constatou: só havia uma maneira de resolver tudo e era por meio da bola parada, sem adversário que não um solitário goleiro amedrontado por nunca não ter sofrido gols como profissional. O meio-campo rubro-negro cumpriu na Terra o
desígnio divino. Mas o empate não servia e seria preciso o gol da virada. Prevendo a incompetência dos súditos, o Homem interveio diretamente: num encontrão despretensioso pela linha de fundo a bola passou debaixo das pernas do goleiro e bateu na do outro lateral alvinegro antes de beijar as redes. Depois veio mais um, lá pela direita, pra confirmar que o caminho era mesmo por ali.

Terminada a rodada, Heleno, Didi e Garrincha perceberam a "besteira" que o Mestre havia feito e foram cobrar-lhe explicações. Ele, com a tranqüilidade e sabedoria que lhe são peculiares sentenciou: fiz bem. Ajudei a todos os cariocas.

Didi, elegantemente, ponderou:
- Mas como, Mestre? O Botafogo também é carioca. E estou preocupado com o jogo do Fluminense daqui a pouco, vai que dá errado também... Aí é que o futebol do Rio volta pro brejo.

Com voz imponente, mas generosa, o Mestre esclareceu:

- Não houve erro. O Fluminense vencerá e não precisarei mais me preocupar com ele, como tenho feito nas últimas rodadas. Deixará de ser carioca pra libertar as Américas.

Sem entender a resposta, Garrincha insistiu com o Mestre,
que, desta vez, foi enfático:

- Eterna criança, quantos séculos serão precisos para você entender que o Botafogo não é um time carioca? Trata-se de uma solitária estrela eternamente à procura de espaço, prova concreta da teoria de Einstein: sequer o tempo absoluto existe pra ele. É uma das poucas a qual concedo livre trânsito pelos buracos negros e nebulosas, que cai e sobe ao sabor dos ventos, mais reconhecida pela sua história e reverenciada em outras cidades e países do que no próprio bairro que leva seu nome. Não te recordas, Pássaro?

Cabisbaixos, os três guardiões alvinegros foram assistir ao jogo do Fluminense pra confirmar o que o Mestre havia dito. Lá pelas tantas, o elegante Heleno se levanta aos brados:
- O Mestre não percebe o que está fazendo! A vitória do Fluminense o leva às Américas mas sela um cruel destino à simpática equipe catarinense. E ainda por cima alvinegra! Coitado de Santa Catarina, já teve o duplo infortúnio de ver o Criciúma rebaixado pras séries B e C. Isso sem contar o Joinville!

Antes que completasse, interveio o Mestre:

- Paciência, alguém tem de perder para que haja um vitorioso. Se esqueceram da parábola da Figueira que secou? E agradeça porque hoje os santos não estão de bom humor. E pergunte ao seu amigo aí do lado como o sete é um número poderoso.

Bastou pra que Mestre e discípulos se entendessem, enquanto assistiam
à fúria cega de quem deveria acalmar a estrela em momentos conturbados
como esse. Mas há coisas que só acontecem mesmo ao Botafogo...

terça-feira, 20 de março de 2007

Amantes profissionais

A cena do esforçado meio-campista Tinga adiantando a bola antes de se chocar com o goleiro Fábio Costa exige de Márcio Rezende resposta imediata. Sem alguém para lhe socorrer e com pouco tempo de decisão, o árbitro colhe de sua consciência o que ela pode lhe oferecer naquele momento. Simula a convicção com a qual decreta a inexistência do pênalti e põe na rua o falso atacante. Cartão vermelho para a despedida melancólica de Márcio dos gramados, - sujeito oculto de predicativos não raro desagradáveis - homem que parece conduzir o espetáculo com isenção e autoridade, vernizes que se desmancham diante das câmeras e do olhar apaixonado, porém atento, do torcedor.

O erro fatal do árbitro na partida entre Cortinthians e Internacional é a cereja do bolo amargo que brinda um campeonato programado para dar certo, sob a égide do Estatuto do Torcedor e da pretensa lisura dos pontos corridos. Mas cenas lamentáveis do longa-metragem 'Brasileirão 2005', com direitos a onze "remakes", evidenciaram, como poucas vezes, um conflito crônico entre paixão e razão; emoção e profissão, que contaminou grande parcela dos envolvidos no mais equilibrado campeonato de futebol do planeta.

A paixão move pessoas em direções imprevisíveis e inimagináveis. A paixão pelo lucro desmedido pôs fim à história de Edílson Pereira de Carvalho na arbitragem e manchou irremediavelmente o campeonato. A disputa de onze novas partidas era, aparentemente, o que havia de mais profissional a se fazer, mas, curiosamente, exacerbou seu oposto: o amadorismo dos segmentos que lidam com o futebol. O que se viu, nas semanas que se seguiram, foram mesas-redondas inflamadas, dirigentes advogando em causa própria, jogadores insensatos diante da perda de pontos anteriormente conquistados, torcedores enfurecidos e mortes nos estádios.


Morte também da confiança no profissionalismo, ou num amadorismo possível, morte nos tribunais, ágeis em demasia para assuntos de primeira categoria, morosos, entretanto, para aquilo que lhe competia intervir com rapidez. A segunda divisão seguiu irregularmente, mesmo
com a comprovação de jogos manipulados, e deixou questões no ar que só serão respondidas em 2006. Em suma, estava consumado o aborto de um projeto que tinha tudo para dar certo.
Quem teve a paixão de Márcio a seu favor fez bom uso dela. Com um elenco de estrelas perdidas, o Corinthians se despiu da vaidade por um momento e permitiu a continuidade do trabalho de um ex-atleta que iniciava carreira de treinador. Em pouco tempo, Márcio Bittencourt arrumou uma equipe desfigurada e transformou-a em candidata ao título.

Encerrou o primeiro turno na frente, mas foi vítima da insegurança de "profissionais" do futebol corintiano. Preferiram um nome de peso e trocaram São Jorge por Santo Antônio. A apaixonada Fiel torcida do alvinegro deu de ombros, afinal, os resultados com Lopes melhoraram o rendimento do time. Paixão de torcedor, como qualquer outra, é eterna enquanto dura.



Ser amante é estar em uma posição confortável, apesar de perigosa e sempre suspeita. É difícil até mesmo para quem veste a farda da isenção esconder a predileção por esta ou aquela equipe. No meio jornalístico esportivo muitas vezes isso rende distorções percebidas pelos torcedores. Fulano torce pro time X, mas é sabido nas redações que tem preferência pelo Y. Justamente por isso, muitas vezes carrega as tintas pendendo um pouco para o seu "rival de coração". De qualquer modo, é sempre mais fácil ser amante profissional, pago para opinar com base em dados, desculpando deslizes clubísticos com comentários aparentemente imparciais.


Juízes também são amantes: não existe profissão regulamentada para eles. Significa dizer que um dia escolheram o ofício por paixão. Paixão pelo sucesso, pelo controle do jogo ou pela cobiça de ganhar mais a partir do status, como demonstrou Edílson, que já virou redutivo de "juiz ladrão" entre as torcidas. Márcio Rezende foi refém de sua paixão, como a do comentarista que se recusa a revelar sua identidade clubística. Acontece que paixão em exercício é caso de amor explícito, pelo menos do ponto de vista do torcedor. Quando se aposentar, em breve, Márcio poderá ir para o outro lado das lentes e virar um amante profissional, podendo medir gestos e palavras. Mas ainda tinha um último ato a cumprir.

A CBF quis homenageá-lo entregando ao mineiro o apito para a decisão antecipada do campeonato. Infeliz decisão. Há dez anos, no mesmo Pacaembu onde jogavam Corinthians e Internacional, Márcio impunha uma triste mácula à própria carreira. Numa legítima final entre Santos e Botafogo, prejudicou os paulistas, validando legalmente um gol irregular de cada equipe e marcando impedimento no lance capital da partida, que poderia dar o título inédito ao Santos.

Ao se deparar com a cena de Tinga se chocando levemente com o goleiro Fábio Costa, Márcio não pôde deixar de se lembrar do Pacaembu de dez anos atrás. Da frustração de 28 mil santistas com o grito de campeão entalado, das pressões que sofreu nos dias seguintes. Enfim, o coração de Márcio Rezende de Freitas não pôde ser profissional o bastante para conter o ímpeto amador no lance decisivo da partida, o que o fez correr furiosamente em direção à área dos "tobogãs" para expulsar, por simulação, o jogador da equipe colorada, em infeliz condição de visitante.

O erro de Márcio não é premeditado nem acidental, mas histórico, subconsciente. Como quem quisesse consertar o que não pôde dez anos atrás no mesmo local, na mesma área dos três gols duvidosos. Todos sabem, inclusive Márcio, que, a duas rodadas do final, a tabela certamente seria outra sem a anulação dos onze jogos, e episódios lamentáveis de amor e paixão não teriam se consumado com a proliferação da desconfiança de jogadores, dirigentes e torcedores em

relação aos homens do apito. Como fez Muricy Ramalho e a direção do Internacional após o empate por 1 a 1 em São Paulo, evocando uma teoria conspiratória pró-corintiana e pedindo que a taça de campeão fosse logo entregue à equipe paulista.

Seja quem for o campeão, o troféu de 2005 terá a reluzência de um carro importado alvinegro e o vermelho escorrendo por suas beiradas. Vermelho de gaúcho colorado, vermelho de vergonha pelo que poderia ter sido e não foi. Tudo isso, com a solene assinatura de árbitros, tribunais, dirigentes, jogadores, torcedores e, por que não, amantes profissionais.
***
Abaixo, os melhores momentos de Corinthians 0 x 0 Internacional, no Pacaembu, pelo Campeonato Brasileiro de 2005. As imagens são da Rede Globo e a narração de Cléber Machado, com comentários de Paulo Roberto Falcão, Válter Casagrande Jr. e Arnaldo César Coelho Sportv e a narração de Luiz Carlos Jr..

quinta-feira, 1 de março de 2007

Sofrimento e sabedoria


O Botafogo é um time quase-grande e sua torcida deve se orgulhar disso.

Exceto pelo surto de grandiosidade de meados da década de 90, o alvinegro perdia em campo e fora dele, sofria sem títulos e via sua torcida diminuir ano após ano. Por isso, caminhava a passos largos para ser um ex-time grande, relegado às páginas amareladas da história.

Pois em meia década à frente do clube, Bebeto de Freitas transformou uma instituição que não ganhava quase nada em uma que quase ganha tudo. Cuca fez o mesmo em um ano e meio. O Botafogo era caricatura de time grande. Hoje, é clube vencedor.

Mas ainda pensa adolescente e paga por isso. Acaba de deixar uma primeira infância mimada, cheia de craques e títulos e uma pré-adolescência conturbada, em que ficou por quase 40 anos órfão de sua história gloriosa. De repente, vitórias e títulos voltam e ele se descobre quase pronto para adentrar a fase adulta, repleto de traumas, alegrias e incertezas. Falta pouco para ser gente grande, mas falta.

Prova disso é o destempero alvinegro após a derrota na Taça Guanabara para o Flamengo. Prova disso é a frase exaustivamente repetida a cada bola na trave, a cada campeonato perdido no último minuto, no último detalhe. Ou o complexo de perseguição que acomete o clube contra o aqui e o além, exaustivamente relembrado no "há coisas que só acontecem ao Botafogo".

Mais do que infantil, é paradoxal. De um lado, o time que perde um turno de campeonato em 10 minutos, o que chora a suposta perseguição da arbitragem, o que lamenta sua história de infortúnios. De outro, o clube do estádio novinho em folha, e por falar em folha, com a folha salarial absolutamente em dia. Com centro de treinamento, torcida cada vez maior - fruto da boa fase dos anos 90 - e mais presente aos campos. O que o Botafogo quer mais? Vitórias? Não faltam. Títulos? Campeão de pelo menos um torneio em 1995, 1996, 1997, 1998, 2006 e 2007. Vice em 1999, 2002 e 2008.

Ah, mas vice não é título... Pois bem. Será que os alvinegros já pararam pra pensar que concorrem na mesma cidade quatro equipes tão grandes quanto ele? Que lugares do mundo podem se dar ao luxo de tanto clube de expressão por metro quadrado? Buenos Aires? Londres? Mais alguma?

Mas adolescência é isso. O permanente confronto interno entre a criança que não quer morrer e o adulto que deseja ser ouvido. Enquanto não passar por seu divã existencial, o clube da estrela solitária vagará pelos campos da fragilidade (in)consciente, a influenciar dribles, chutes, cabeçadas, declarações e comportamento de dirigentes, técnicos, jogadores e torcedores. Até lá, não precisam se ressentir do choro, afinal, quantos de nós não têm de derramar lágrimas para crescer.

Só que, para ser grande como seus pares, o alvinegro vai precisar aprender a lição: sentir a dor sem lamentar é sofrer com sabedoria.