sábado, 29 de dezembro de 2007

Um tapa na cara da hipocrisia

A cena chocou meio mundo: um pai-técnico destemperado agride a filha-atleta após o mau resultado no mundial de esportes aquáticos, disputado na Austrália. De quem é a culpa? Da câmera indiscreta.

Por que ela estava lá no vestiário justamente naquele momento constrangedor, senão para nos tornar cúmplices da nossa imagem e semelhança cotidiana? Só para nos forçar a emitir uma opinião socialmente correta sobre o acontecido? Definitivamente, apareceu na hora errada.

Pois fomos nós. Editoriais abertos, textos cintilantes, consciências tranqüilas de que o absurdo da cena do 'espancamento' merecia reprovação veemente. E cumprimos o papel devido de cidadãos.

Na seqüência da cena, a filha parece fugir. Nosso olhar insiste em segui-la. Ela sai do quadro, como se quisesse abandonar o papel principal da tragédia, mas retorna. Como num passe de mágica, o pai volta do transe. Abandona a fúria perfectível de treinador e volta ao pai-humano, enquanto a filha perde os superpoderes de atleta para ser simplesmente... filha.

Para a ucraniana Kateryna Zubkova, pior do que perder uma disputa esportiva seria consumar a dilapidação moral de seu pai em praça pública. Mais por instinto do que por razão, busca, atordoada, o assento. Claramente arrependidos do ato de agressão mútua, pai e filha transferem ao espectador, ainda que sem saber, o papel do constrangimento. Por que aquela câmera estava ligada?

Imagina então se, a cada agressão nossa a um filho, a um irmão ou um companheiro houvesse uma câmera a apontar o indicador para nossa dignidade? Conviveríamos aterrorizados com o monstro do ato que persiste a despeito do nosso arrependimento, de nossa condição humana, dos erros e acertos inerentes ao simples existir. Quem nunca se excedeu, ainda que verbalmente, que atire a primeira pedra. Pensando bem, melhor não atirar. Pode pegar mal...

Por isso, a filha é a primeira a correr em defesa do pai, proibido pela justiça australiana de se aproximar dela em um raio de 200 metros. Sabe que Mikhail Zubkov errou. E daí? Será que ela também não erraria com um de seus filhos? Humanamente, exige que a proibição seja revista. E o tribunal acata.

Somos todos assim. Batemos na vida aqui, apanhamos dela ali. Zubkova prometeu ao pai uma grande atuação que apagasse a vergonha dos Zubkov. No fundo, a ucraniana sabe que, brevemente, Melbourne serão águas passadas de março. Uma furiosa piscina de julgamentos onde, desta vez, a hipocrisia nossa de cada dia levou uma surra da autenticidade.

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Abaixo, você vê a cena da agressão de Mikail Zubkov à filha. As imagens são da Rede Globo, veiculadas no programa Redação Sportv, do canal a cabo Sportv. Luis Roberto apresenta da redação e é auxiliado, em Melbourne/AUS pelo repórter Pedro Bassan.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Nós do vandalismo

Neste domingo o futebol viveu um dia de PCCs, Marcolas e Al-Jazeeras. Quem ligar as televisões hoje e vir as cenas exibidas exaustivamente do jogo entre Internacional e Grêmio vai ter a impressão de que o esporte preferido dos brasileiros extrapolou os limites da sanidade.

A informação mais importante do episódio lamentável não está no fato, mas na cobertura mais uma vez espetaculosa da imprensa, conferindo importância àquilo que não merece, de fato. Parte ínfima da torcida do Grêmio se dirigiu ao estádio do Internacional com duas intenções claras: depredar o patrimônio adversário e ganhar notoriedade num caso em que o jogo seria, para eles, mero detalhe. Conseguiu, parte por irresponsabilidade dos órgãos responsáveis pelo planejamento do espetáculo in loco, parte por falta de senso comum de nós, comunicadores.

Não é a primeira vez que damos publicidade a bandidos, estejam eles travestidos ou não de torcedores. Fazemos exatamente o mesmo que a polícia e os políticos, responsáveis pela manutenção de uma polis minimamente civilizada. Despreparados para exercer plenamente nosso ofício, dirigimos nossos instrumentos para a direção errada.

O presidente da equipe que recebe os baderneiros transfere a culpa ao dirigente adversário, que vaticina: "meus torcedores foram tratados como animais, encurralados em uma pequena parte do estádio sem direito a utilizar os banheiros". Sem perceber a gafe que comete ao generalizar a torcida gremista, mistura o torcedor-fã ao bandido travestido de torcedor. Bota no mesmo pacote duas classes que, de comum, só têm o espaço que lhes foi designado.


A inteligência policial (expressão que, aliás, virou moda) não destacou efetivo suficiente para a partida, subestimando os alertas dados pelos baderneiros, que prometeram ao longo da semana fazer o que de fato fizeram. O roteiro da tragédia estava escrito. Bastava ser executado e rodado.

Um dos raros momentos de lucidez se deu quando a partida foi paralisada. Parte do estádio Beira Rio ardia em chamas e o repórter Luciano Calheiros perguntou a um jogador gremista algo do tipo "ainda dá para fazer alguma análise do jogo diante disso tudo?". Não era o tipo de pergunta para qual boa parte dos jogadores estivesse treinado para responder. Aliás, apenas treinadores estão treinados para responder algo que não está na pauta diária. Poucos treinadores, diga-se de passagem. Personas non-gratas pela imprensa, como o hoje beatificado Felipão ou os tão temidos quanto exaltados Emerson Leão e Vanderlei Luxemburgo.

A propósito, o jogador em questão, diante da pergunta do repórter, fez a típica "análise do jogo": o time está lutando, a partida está "pegada", etc e etc. Perplexo com a falta de engajamento do jogador na questão - diante de parte do estádio envolto numa fumaça negra asfixiante - Calheiros tentou situar o atleta no episódio. Em vão. Eles não usam black-tie.

O grau de exaltação dos bandidos era proporcional à agressividade dos despreparados policiais e do deslumbramento de fotógrafos e cinegrafistas. Se pudessem, pegariam uma sonora com a fumaça: como é estar asfixiando os torcedores? Outros comunicadores, mais comedidos, optaram pelo caminho simplista da hipocrisia: eles deveriam ter tomado alguma providência. Esses vândalos não podem continuar freqüentando os estádios. O policiamento está inadequado. Até quando ou onde isso vai parar, perguntavam-se tão alienados quanto o presidente de clube que generaliza seu torcedor ou o responsável pela segurança que não percebeu o infeliz desfecho que o episódio iria ter.

Vinda da imprensa, dos comunicadores, a pergunta soa esquizofrênica. Eles são parte do espetáculo até o ponto que lhes convêm. Depois, não se sentem culpados por "publicizar" o fato, como não se sentiram quando abriram infindos blocos de Fantástico e afins para cobrir as ações do PCC em tempo real. Marcola devia estar rindo e pedindo por celular que aumentassem o vandalismo cada vez que o programa abria novo link a um de seus repórteres.

A imprensa está órfã da censura e refém da democracia. Falar em censura na imprensa é como apoiar o nazismo. Pois é hora de dizer: há um tipo de censura que precisa ser considerada. Ela é necessária para que não se dê cartaz àqueles que não merecem. Diferentemente da implementada pela ditadura militar, esta se baseia na defesa dos direitos humanos e numa sociedade não-violenta, a começar pela construção da linguagem. Se vivemos num país em que mais de 90% da população recebe informações via televisão, se reconhecemos que somos, de fato, produtores e formadores de opinião e educadores, por que não direcionarmos nosso olhar e nossa linguagem para a reeducação de nossa audiência?

Não basta pregar o fim da violência nos estádios. Enquanto ajustarmos nossas lentes para as arquibancadas violentas e não abolirmos de nosso futebolês palavras como guerra, batalha, tiro, bomba e afins cairemos sempre na hipocrisia da omissão de quem sabe que pode mudar mas prefere angariar votos para a a audiência. O bom-senso agradece.
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Abaixo, a reportagem do jogo entre Internacional e Grêmio, com imagens do canal a cabo Sportv.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Como pode um peixe vivo...

O cruzamento de Jorge Luiz é perfeito. Romário se estica, mas perde para o tempo. Fosse bola, estaria sorrindo de orelha a orelha. Como é Peixe, mergulha no vazio e só encontra a rede.

Romário sonhou com gols. Deram-lhe oito. Pediu uma partida para a história. Por sete vezes a rede balançou em apenas 45 minutos. Suplicou emoção. Disputa de pênaltis. Mas que destino é esse que entrelaça o Peixe na ilusão do quase? Que oferta aquilo que um jogo tem de melhor para o artilheiro, exceto para um sonhador agonizante?


Ninguém deu bola para ele. Bola nos pés do meio-campista, cadê Romário? Bola para o lateral, onde está Ele? Os deuses olham, mas até para eles é difícil encontrar o gênio. Definitivamente, 11 não é a bola da vez. Estatura?

Estigma.

Em noventa minutos tingidos de preto e branco, Romário não tem seu sonho revelado. Ao fim do jogo, suas pernas se transfiguram em cristal frágil, a acusar 23 anos de serviço prestado às redes. Desaba no gramado. "Sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só,
mas sonho que se sonha junto é realidade."

Cansados da romaria angustiante, seus companheiros de equipe não sonharam com o milésimo. Se pudessem, todos reservariam uma baliza só para que ele realizasse sua fantasia e, finalmente, deixasse todos trabalharem. Mas a grandeza do Peixe não permite a nau cruzmaltina seguir rumo solo. Por hora, o Maracanã será sempre palco do onze. Só depois, dos outros dez coadjuvantes.

Sem forças, Romário vê seu time e seu sonho serem penalizados. O Peixe olha fixo e abatido para as redes. E, como apraz ao destino de sua espécie, não esboça reação.

11 de abril de 2007. No dia da estrela solitária Romário, foi outra que brilhou. Na verdade, uma constelação de 11 homens com brio de general e sorte de gloriosos. O Botafogo segue em busca do sonho do bi. Ao Peixe, resta descansar em sua rede de ilusões e aguardar a próxima janela do destino se abrir.

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Abaixo, você confere como foi Botafogo 4 x 4 Vasco no Maracanã, pelas semifinais da Taça Rio pela Globo com a narração de Galvão Bueno e comentários de Sérgio Noronha.