sexta-feira, 22 de junho de 2007

Por um triz, Matariz!

Fevereiro de 2003.

- Vocês têm certeza de que é isso mesmo o que querem?

A pergunta de Andreia encontrou silêncio no rosto exausto de Felipe. Sabia que um segundo a mais de hesitação era abortar o plano para aquele dia na Ilha Grande.

- Vamos, dá sim. Olha, são oito e meia. Se sairmos até nove, chegamos em Matariz antes de anoitecer.

Meus dois amigos tinham boas razões para não comprarem a idéia. Andreia já havia percorrido o caminho em outra de suas "voltas" na Ilha Grande e, para Felipe, a ida a Cachadaço no segundo dia já valera a viagem. Para mim, a conta era simples: restavam três dias e, se não chegássemos à metade da parte interna da ilha, as chances de desfrutarmos a praia selvagem de Aventureiro seriam mínimas.

Caminhar por Ilha Grande é reviver um pouco da sensação luso-brasileira de Caminha, José de Alencar e Castro Alves. Algumas trilhas simplesmente não existem. São apenas o caminhar pela areia tendo, de um lado, a baía de Ilha Grande límpida (será que hoje ainda está?) e do outro a vegetação costeira que se mistura com os riachos que escorrem do Pico da Pedra D'Água para dar no Poço dos Escravos, nas Ruínas do Lazaretto e no Aqueduto, obras de arte esculpidas parte pela natureza, parte pela ignorância secular.


A caminhada pela Enseada das Estrelas, que tem seu nome relacionado à fartura de estrelas do mar naquele trecho, era relativamente fácil. Daquelas para se contemplar, esquecendo peso nas costas, pernas pesadas e coisas do gênero. E que manhã de verão generosa! Vento fresco e sol tolerável, acabara de se juntar a nós um insistente cãozinho vira-lata que adotamos como mascote.

Mais uma hora e meia, encarávamos a trilha que ligava o Saco do Céu a Japariz. No início, apenas uma trilha escorregadia. Depois, ela mesma, apenas uns bons graus a mais na vertical. Pela primeira vez, percebi o peso de se carregar uma mochila de 60 litros. Felipe ia numa velocidade digna de carros de rali. Andreia, devagar e sempre, fazia o "meio". Eu fechava a fila cada vez mais exausto, e não me cansava de perguntar à parceira quanto tempo faltava.

- Não muito. Mais vinte minutos estamos lá.

As respostas de Andreia sempre tinham a precisão de um cronômetro. Eu e Felipe brincávamos, dizendo que era como se ela vivesse com uma bússola e um relógio incorporados ao seu corpo. Sempre sabia para que direção irmos e quanto tempo precisaríamos.

Em Japariz, foram pelo menos três quartos de hora bem descansados na sombra de amendoeiras próximas a um bar rústico. Com as reservas de água comprometidas pela falta de nascentes ou bicas pelo caminho, nos vimos obrigados a gastar o pouco que tínhamos. O relógio marcava uma e meia da tarde quando partimos para Bananal dispostos a cumprir o roteiro pré-estabelecido.

- E economizem água porque daqui em diante vamos ter poucos pontos de abastecimento, alertou nossa amiga.

Logo de saída, passamos por uma chácara e nosso fiel escudeiro açoitou duas galinhas d'angola, sob os gritos desesperados de "Ei, volta aqui!" "Esse cachorro tem dono?" Para todos os efeitos não, mas, persistente que era, minutos depois estava conosco na trilha.

O relógio marcava 14h30. Seguimos até Bananal, parando antes em Freguesia de Sant'Anna - embora desativada, a principal igreja da Ilha. Alguns escorregões e horas de caminhada, chegávamos a Bananal com o sol das 16h.

O cenário era tentador. Algumas pousadas de um lado e corpos cansados de outro. O sol baixando contra a vontade de deitar até só Deus sabe quando.

- Temos mais duas horas e meia de sol para chegarmos ao camping de Matariz, alertou Andreia.

- Mas não tem como ficar aqui em Bananal? De repente a gente pede para montar acampamento em alguma daquelas pousadas...

- Não, Rafael. Nunca fiz isso. Não temos grana pra bancar pousada e eles não vão deixar três pés-sujos entrarem lá. Mas se quiserem tentar, tentem. Só se lembrem que não temos muito tempo antes do pôr-do-sol.

- Vamos seguir então, Rafa. Esquece essa idéia. Se o camping é em Matariz, paciência...

As palavras de Felipe foram sensatas. Mas doía o coração - para não dizer as pernas, as costas e tudo mais que tivesse articulação - saber que parar em Bananal era igual a escurecer no meio da trilha para Matariz. O tempo estava contado e se não aumentássemos o ritmo consideravalmente, chegaríamos ao destino com o cair da noite, o que em pouco nos ajudaria na busca de um camping.

A última trilha era bem no meio de um mato baixo. Percebíamos o sol se pondo, mas sabíamos que, pela época do ano - fevereiro - ainda seria possível, mesmo sem o horário de verão, procurarmos camping sem a luz de lanternas. Eram 18h20 quando aportamos em nosso destino.

Matariz se resumia a casinhas de pescador, um bar, uma praia muito poluída e alguns terrenos. Um deles virou camping. Na verdade, só se pôde acampar por lá devido à existência das ruas, que nos distanciam um pouco da faixa de areia, onde, definitivamente, a lei não permite armar barracas. E as ruas só estão ali porque, um dia, o lugarejo foi uma fábrica pesqueira.

Corremos para o bar e custamos uns vinte minutos para alcançarmos a dona do camping. Bom, "camping" é uma generosidade para aquele terreno arenoso, cheio de arbustos e saúvas e dois banheiros improvisados. Uma das formigas atacou impiedosamente o dedo médio do pé esquerdo de Andreia. Sorte que já havíamos baixado acampamento. Tempo para eu e Felipe prepararmos o rango da noite - miojo, para variar - antes de irmos para dentro da barraca.

Daquele dia longo viria uma paixão rompante e insurgente de morar um dia em uma ilha. Utopia que, graças a Deus, eu veria se concretizar quatro anos depois no coração de um dos maiores centros urbanos e comerciais do Rio de Janeiro. Pena que tenha durado tão pouco, assim como aquela noite, afinal, o dia seguinte nos esperava para outro dia de sol, desta vez rumo à Praia Grande de Araçatiba.

Mas isso é papo para outra história...

quinta-feira, 21 de junho de 2007

Quando o caminho venceu o destino

Uma das experiências mais ricas que levo da vida até aqui é minha primeira trilha. Quem me apresentou à novidade foi Andreia, uma amiga filha da terra e que hoje se encontra casada com sua razão de viver: preservar a maior floresta equatorial do planeta.

Acabara de entrar para a faculdade e ainda vivia os primeiros semestres de alegria, ansiedade, enfim, tudo o que fosse emocionalmente contagiante. Era um menino do futebol e do video-game até aparecerem os caminhos tortuosos de Alto Caparaó.

A cidadezinha não tem mais de 10 mil habitantes, como naquela época. Mas guarda um dos maiores atrativos da natureza brasileira (maior mesmo, em termos de tamanho): o Pico da Bandeira. Trata-se do terceiro ponto mais alto do Brasil, o mais alto do Sudeste. Tão acima do nível do mar que, reza a lenda, mesmo estando na divisa de Minas com o Espírito Santo, de lá dá para se avistar as águas deste estado. Então era pagar para ver.


Começamos a caminhada no início da noite, por volta de 21h30. A idéia era ver o amanhecer lá de cima. O mês, setembro, não favorecia tanto a aventura , já que tem o bendito "erre" no meio. E, dizia o manual do trilheiro que, para não se surpreender por tempestades, trombas d'água ou coisas do gênero , é bom evitar os meses que contêm essa letra.

Mesmo assim, subíamos pelo vale que margeia o rio Caparaó numa noite gostosa, com uma brisa refrescante e um amontoado de casacos sobrepostos. Éramos conduzidos pelo Sr.Sérgio, hoje capitão da marinha aposentado, pai de minha amiga. Fechando o grupo, mais quatro colegas, cada qual com seu mochilão e barraca nas costas.

Lembro-me da fascinação por filmar aquela aventura. Registrar o momento inédito virara obssessão. Filmei a saída, a subida e colhia depoimentos a torto e a direito até ser alertado:

- Rafael, desliga a luz da câmera porque a gente pode precisar dela.

Andreia tinha razão. A visibilidade não era das melhores, já que, mesmo caminhando sob lua cheia, uma frente fria acabara de se aproximar da região. Assim, concluímos com relativa facilidade a primeira parte da caminhada, da tronqueira (saída) até o terreirão, ponto de apoio e descanso eventual.

Eram onze e meia da noite e o frio, de suportável, já passava a congelante. A visibilidade piorava sensivelmente e Sr.Sérgio achou por bem não permanecermos a noite no terreirão até horas antes do amanhecer.

Encontramos um casal acampado na beira da trilha que levava ao pico. Haviam acabado de tentar uma investida frustrada. Se, na primeira parte, o vale do rio Caparaó era generoso com marinheiros de primeira viagem, na segunda nem tanto. A subida ficava íngreme e se confundia com bifurcações criadas para as mulas que levavam bagagem de turistas que preferiam subir sem peso nas costas.

FIzemos uma rápida avaliação. Valia a pena prosseguir? Era um sete de setembro, e nada mais simbólico do que atingir o pico da bandeira no dia da independência, mas não dava para ignorar as condições extremas - para não dizer perigosas - que teríamos de enfrentar nas duas horas e meia de caminhada até o cume.

Decidimos ir com o casal. Subiríamos até bem perto do pico e esperaríamos mais uma hora e meia no máximo para ver o amanhecer. A operação de risco punha em xeque nossa resistência física e psicológica. Os recursos eram cada vez mais escassos. Algumas lanternas não funcionavam mais, outras iluminavam precariamente e, após caminharmos mais uma hora e meia, paramos.

Parar no meio de uma trilha é uma decisão complexa. Mexe com o emocional do grupo, normalmente já desgastado, além de por à prova a liderança do comandante do grupo, no caso o Sr.Sérgio. Numa lição de humildade e desprendimento surpreendente, ele suspirou por alguns segundos e confessou:

- Nos perdemos.

Pediu que reavaliássemos juntos a decisão de subir naquelas condições. Certamente, naquele momento, falava a voz da experiência de piloto, atividade exaustivamente praticada por Sérgio na Marinha. Só que retornar ao terreirão também não seria fácil àquela altura. Há muito havíamos perdido o ponto de referência.

Toda câmera que se preza é feita para filmar, mas o que isso importava às 2h30 daquele sábado com neblina e rajadas de vento? Tínhamos a opção de guardar a recordação do que viesse a acontecer em nossas memórias ou filmar o que restasse de viagem, gastando mais bateria do que a luz demandava e, quem sabe, virar capa do noticiário caparaoense no dia seguinte.

Por isso, decidimos que a câmera seria, junto com a lanterna profissional de Sérgio, a luz de que precisávamos. Subimos uma hora por trilhas absolutamente incertas. Por um momento, Andreia até teve a sensação de reencontrar a trilha, m as a escuridão era tanta que bastou alguns segundos para nos darmos conta de que tamanho esforço havia sido em vão.

- Posição de bivaque, todo mundo!

A ordem de comando de Sr.Sérgio era impositiva. Nunca havia ouvido aquela expressão antes, aliás, nunca havia ouvido Sérgio falar daquela maneira antes, mas pelo frio que fazia, pela impossibilidade de continuarmos a caminhada e já sem a luz de apoio da câmera, imaginei se tratar de um procedimento emergencial. Significava termos de procurar um ponto de apoio no desnível entre uma pedra e outra, de modo que a de cima funcionasse como barreira contra o vento gelado. Caminhando em círculo há meia hora por um platô descampado, demoramos mais de meia hora para nos espremermos (ou inventarmos?) num pequeno desnível e nos viramos para pregar os olhos. No que restava daquela noite de incertezas, a única resposta era que não veríamos o amanhecer do Pico da Bandeira.

O relógio, uma das raras coisas que ainda funcionavam àquela altura, marcava 7h30. Sérgio nos acordou informando que precisávamos descer. A neblina ainda estava forte, a visibilidade nula, mas, ao menos, a claridade nos dava alento de que resolveríamos o dilema em alguns minutos. Uma hora mais tarde, céu nublado, porém com visibilidade suficiente para descer. Chegamos a pensar se valia a pena continuar a caminhada, já que era dia e reencontráramos um ponto de referência. Mas Sérgio interveio novamente. Pediu que fôssemos pacientes e reconhecêssemos que aquela não havia sido a nossa vez.

Foi inevitável a frustração, especialmente para quem nunca havia feito uma trilha. Mas se não pude chegar ao destino, aprendi definitivamente a lição. Muitas vezes o próprio caminho é o destino. Quantas vitórias não houve naquela derrota aparente? Superação física, mental, paisagens lindas apreciadas na volta, esperança de que é possível se chegar, mesmo que não quando desejamos. E, pensando bem, isso vale para tudo na vida. Por mais que nosso desejo aponte de forma segura e determinada para um ponto que chega a tocar o céu de tão alto, quando perdemos agora, não perdemos para sempre.

Em tempo, chegaria ao Pico da Bandeira no ano seguinte. Mas essa é uma outra história...

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Renato, o Destino e o Brasil

Corpo fechado, gol benzido, nada passa por Fernando Henrique. O que se esconde em cada um dos 90 minutos de agonia tricolor, de um time que pouco ataca e se arrisca na iminência de morte por detrás da linha média?

Abril despedaçado. Retirado subitamente do Vasco de Romário, Eurico Miranda e São Januário, o gaúcho mais carioca do país troca o suntuoso projeto dos 1.000 gols pela modesta ambição de voltar à casa. Acolhido generosamente pela torcida, lá estava mais um personagem do vergonhoso rebaixamento triplo em 96, 97 e 98. Jogador e aprendiz de técnico na ocasião, Renato deixara as Laranjeiras com uma dívida impagável.

Um dia, precisaria voltar. Tinha de prestar contas com o destino. Obrigava-lhe o futebol que a moral desnuda vestisse o fardo de três cores. Um clube que via o presente ruir junto com os vitrais de sua sede a cada novo vexame. Perdia o Fluminense que clamava por Renato.

De repente, lá está o Portaluppi. E onde está o tricolor cambaleante do primeiro semestre, incapaz sequer de passar às semifinais de turno no campeonato local? Aquele Fluminense pálido e minúsculo parece ficar num passado que nenhum torcedor deseja se lembrar. Empate com gols aqui, vitória magra acolá, segue o tricolor com o regulamento debaixo do braço.

Quando acordam, lá está o Flu. Algum time arrebatador? Não. Falível, frágil mesmo. Mas é para ser 2007 o ano da Copa do Brasil. Ou alguém ousa dizer, por exemplo, que esse time é melhor do que o vice-campeão de 2005? Aquele não era para ser, não estava escrito. Não tinha encanto.

Esse não joga. Arrasta-se animado senão por um destino moribundo a clamar Renato. Maior do que o presidente Horcades, maior do que o patrocinador extravagante, maior que qualquer campeonato vencido, lamentado ou expurgado. Maior do que Ivos, Paulos ou Joéis. Maior que Albertos, Dias ou as 17 contratações da diretoria.

De repente, Santa Catarina. Santo destino! Lá estavam Fluminense, Figueirense, Renato e a dívida histórica. Lá no Rio Grande, em 92, com um gol de pênalti inexistente, o Fluminense deixava escapar seu primeiro título da Copa do Brasil. Talvez por isso – e pela impossibilidade de uma revanche contra o Inter, que disputava a Libertadores – quis o destino que o título tricolor viesse exatamente do sul.

Em Florianópolis, nada passa por Roger, Thiago Silva e o Destino. Nada rompe a linha de zaga da história, que escreve, a cada segundo de resistência, uma declaração de amor a Renato. Com as mãos no rosto, o gaúcho chora o apito final. Santo reconhecimento do tempo! Agora sim, ele pode deixar a cabeça cair sobre o travesseiro e dizer: paguei minha dívida com o futebol.

Para acordar no dia seguinte e ver a imensa torcida tricolor novamente grata por sua existência.