quinta-feira, 2 de maio de 2013

De pais e paixões


Muitas vezes me pego de volta ao campinho de terra em Maria Paula. Lá, até hoje faço minhas defesas arrojadas, dribles improváveis, gols e, principalmente, revejo meus amigos. Se, de fato, rumasse para aquelas bandas, encontraria meu sonho consumido por casas que justificam a expansão imobiliária na região e, provavelmente, não encontraria um terço de quem imagino lá estivessem.
Não importa. Uma das frases que aprendi com meu pai é: onde está o seu coração, ali está o seu tesouro. Pois de tempos em tempos vou reivindicar meu quinhão. E descubro que ele se mistura com lembranças de um menino que andava descalço por ruas de terra e fazia da pequena vila um grande autódromo com corridas disputadas de bicicleta num espaço onde mal cabiam carros.
No quarto, o grande estádio da cama, com gol de caixa de sapato, jogadores-pregadores coloridos e um narrador empolgado por brincar de ser Deus e criança em plena adolescência. No campeonato do quarto, manipular resultados não era antiético e o vencedor poderia mudar ao sabor dos gritos de gol fabricados numa fração de segundo.
Marcelo, pai de arquibancada, ensinou-me a torcer pelo Botafogo como um autêntico botafoguense. Nas curvas dos assentos acimentados do Maracanã ou sob o sol niterioense de um Caio Martins, me apaixonei pelo futebol com a mesma intensidade que ele torcia pelo Bota. Ele era daqueles capazes de dizer: não gosto de futebol, gosto é de Botafogo.
Fosse por Marcelo, talvez hoje não seria um jornalista esportivo. No máximo, um dos muitos corneteiros de plantão das arquibancadas. E como seria divertido isso! Gritaria contra o técnico, xingaria o lateral que não cobre, o meia que não sabe passar e o atacante que se cansa de perder gols e provocaria de vez em sempre quem não vestisse o preto e o branco.
Mas havia Francisco, de quem herdei meu segundo nome e meu sobrenome. Austero, comedido, perspicaz, um mineiro cruzeirense que freqüentava a sede do Flu e dizia torcer pelo Botafogo. E torcia, de fato. Não como Marcelo. Meu pai era cerebral, racional, lógico. Perdeu por isso, venceu por aquilo, não merecia vencer, tinha de ganhar...
Tudo levava a crer que meu pai não era um autêntico botafoguense, mas ele revelava sangue alvinegro no pessimismo crônico. Por outro lado, quantas não foram as vezes em que o vi abrir mão de torcer pelo seu time de infância para compartilhar da felicidade dos filhos? Não me lembro de um Cruzeiro x Botafogo sequer que tenha feito seu coração pender para o lado celeste.
Com ele, aprendi a ver rivais mortais apenas como adversários esportivos. E entender que futebol era apenas um jogo. Um balé lindo, eterno, de vencedores e vencidos que se alternam em intensidade e freqüência como num perfeito concerto musical. Perder ou vencer depende do ponto de vista, quem sabe do humor de quem torce... E vi que tinha escolhido o lado dos perdedores só para encher meu coração de alegria nas poucas vezes em que saísse vencedor, a curtir uma alegria permitida a poucos.
Perder deixou de ser doloroso com o passar do tempo, justo por conta do aprendizado que meu pai me deu. Já Marcelo virou uma espécie de termômetro das arquibancadas. Sempre que quero saber como está o alvinegro, recorro a ele,afinal, ninguém vive Botafogo mais intensamente do que meu segundo pai. E quando quero deixar de lado o traje de jornalista para viver o torcedor apaixonado, é ao lado dele que acompanho a missa campal dos domingos.
Se alguém algum dia procurar essa alma alvinegra e não encontrar, tente um dos inúmeros estádios espalhados pelos sonhos de cada torcedor deste planeta. Estarei numa daquelas curvas, a inspirar sempre as letras de quem escolheu o caminho da paixão por contar um esporte que escreve torto por linhas mais tortas ainda.

7 comentários:

Anônimo disse...

conheço bem o malabarismo interno do pai cruzeirense. já torci para o botafogo do meu filho em jogos contra o meu fluminense. hoje faço menos, quase nunca mais. essa desinversão se dá no processo de maturação do filho. ele se independe, eu me liberto. ele vai à vida dele, eu volto ao meu lado da arquibacada. é bonito.

Rafa Barros disse...

Certa vez eu e meu irmão tentamos pagar um pouco dessa dívida. Foi na semifinal da João Havelange, em 2000, no Mineirão. Vi o Vasco desmontar o Cruzeiro e fiquei muito constrangido de não poder retribuir o carinho dele. Chegamos a vestir a camisa celeste (se meu avô atleticano souber disso, me mata! -rs), mas descemos a Catalão com gosto de guarda-chuva na boca...

Unknown disse...

Rafa, só você com sua sensibilidade de uma alma pura é capaz de delicadamente evocar afetos em uma crônica de futebol. Li para Marcelo, ele se emocionou, mandou agradecer, creio que não encontrou as palavras para o que ia no coração e disse que já foi mais botafoguense. Imagine....

Rafa Barros disse...

Fico feliz em poder tocar almas e emocionar. São sentimentos que nosso mundo está precisando para que as pessoas sejam menos violentas no seu discurso, no seu agir, pensar e, sobretudo, atuar em suas diversas personas egóicas.

Beijo Grande, mãe!

Anônimo disse...

Ou, rapaz. Nem me lembre desse Cruzeiro x Vasco. Foi um dos últimos momentos de glória recente do Vascão. E, um jogo antes, havia vibrado com aquela virada histórica contra o Palmeiras em pleno Palestra. Essa foi uma semana inesquecível para o meu "eu torcedor".

Engraçado é que de uns tempos pra cá eu também resolvi escolher o caminho da racionalidade. Mas, no calor de uma partida, é impressionante com todos os conceitos pré-estabelecidos na minha conduta vão para o espaço.

Depois que eu dou um berro em frente a TV, xingando o Jonílson que só sabe chutar a bola pra cima, indago: Meu Deus, esse não sou eu! Pior então é quando resolvo entrar em campo. Seja numa peladinha qualquer ou valendo três pontos o sangue ferve. Arrumo briga, vou pra cima do juiz, dou carrinho, gasto todo meu repertório de palavrões... Depois, de um tempo, a exclamação de sempre: esse não sou eu!

Mas, no fundo, no fundo, acho que esse Breiller que se indigna, esperneia e xinga todo mundo sou eu mesmo. Aquele Breiller que se contém todo dia para não explodir e causar embaraços na vida real. Porque não há lugar melhor para despertar esse outro eu do que todo o cenário imaginário construído pelo futebol.

Como você mesmo disse, Rafa, tudo por culpa desse "esporte que escreve torto por linhas mais tortas ainda".

disse...

Rafa, realmente só mesmo vindo de uma alma tão humana e sensível pra ser capaz de descrever com tanta perfeição o campinho de terra de Maria Paula...engraçado que embora nunca tenha lá morado compartilho de mts sentimentos parecidos com os relatados...Talvez por ter feito parte tantas vezes da "arquibancada", ou melhor, por ter me equilibrado no barranco ao lado para vê-lo jogar, e mts vezes tb sentir o gosto do barro ao cair da bicicleta andando ali...Excelentes memórias!!!Tb me remeteram a outros tempos...
Qto à homenagem ao Marcelo...estou sem palavras!!!Quisera eu poder ter um "filho-presente" assim...
Parabéns pela belíssima crônica!

adonadoalfinete disse...

PERFEITO!!!SEM PALAVRAS!!!