quinta-feira, 21 de junho de 2007

Quando o caminho venceu o destino

Uma das experiências mais ricas que levo da vida até aqui é minha primeira trilha. Quem me apresentou à novidade foi Andreia, uma amiga filha da terra e que hoje se encontra casada com sua razão de viver: preservar a maior floresta equatorial do planeta.

Acabara de entrar para a faculdade e ainda vivia os primeiros semestres de alegria, ansiedade, enfim, tudo o que fosse emocionalmente contagiante. Era um menino do futebol e do video-game até aparecerem os caminhos tortuosos de Alto Caparaó.

A cidadezinha não tem mais de 10 mil habitantes, como naquela época. Mas guarda um dos maiores atrativos da natureza brasileira (maior mesmo, em termos de tamanho): o Pico da Bandeira. Trata-se do terceiro ponto mais alto do Brasil, o mais alto do Sudeste. Tão acima do nível do mar que, reza a lenda, mesmo estando na divisa de Minas com o Espírito Santo, de lá dá para se avistar as águas deste estado. Então era pagar para ver.


Começamos a caminhada no início da noite, por volta de 21h30. A idéia era ver o amanhecer lá de cima. O mês, setembro, não favorecia tanto a aventura , já que tem o bendito "erre" no meio. E, dizia o manual do trilheiro que, para não se surpreender por tempestades, trombas d'água ou coisas do gênero , é bom evitar os meses que contêm essa letra.

Mesmo assim, subíamos pelo vale que margeia o rio Caparaó numa noite gostosa, com uma brisa refrescante e um amontoado de casacos sobrepostos. Éramos conduzidos pelo Sr.Sérgio, hoje capitão da marinha aposentado, pai de minha amiga. Fechando o grupo, mais quatro colegas, cada qual com seu mochilão e barraca nas costas.

Lembro-me da fascinação por filmar aquela aventura. Registrar o momento inédito virara obssessão. Filmei a saída, a subida e colhia depoimentos a torto e a direito até ser alertado:

- Rafael, desliga a luz da câmera porque a gente pode precisar dela.

Andreia tinha razão. A visibilidade não era das melhores, já que, mesmo caminhando sob lua cheia, uma frente fria acabara de se aproximar da região. Assim, concluímos com relativa facilidade a primeira parte da caminhada, da tronqueira (saída) até o terreirão, ponto de apoio e descanso eventual.

Eram onze e meia da noite e o frio, de suportável, já passava a congelante. A visibilidade piorava sensivelmente e Sr.Sérgio achou por bem não permanecermos a noite no terreirão até horas antes do amanhecer.

Encontramos um casal acampado na beira da trilha que levava ao pico. Haviam acabado de tentar uma investida frustrada. Se, na primeira parte, o vale do rio Caparaó era generoso com marinheiros de primeira viagem, na segunda nem tanto. A subida ficava íngreme e se confundia com bifurcações criadas para as mulas que levavam bagagem de turistas que preferiam subir sem peso nas costas.

FIzemos uma rápida avaliação. Valia a pena prosseguir? Era um sete de setembro, e nada mais simbólico do que atingir o pico da bandeira no dia da independência, mas não dava para ignorar as condições extremas - para não dizer perigosas - que teríamos de enfrentar nas duas horas e meia de caminhada até o cume.

Decidimos ir com o casal. Subiríamos até bem perto do pico e esperaríamos mais uma hora e meia no máximo para ver o amanhecer. A operação de risco punha em xeque nossa resistência física e psicológica. Os recursos eram cada vez mais escassos. Algumas lanternas não funcionavam mais, outras iluminavam precariamente e, após caminharmos mais uma hora e meia, paramos.

Parar no meio de uma trilha é uma decisão complexa. Mexe com o emocional do grupo, normalmente já desgastado, além de por à prova a liderança do comandante do grupo, no caso o Sr.Sérgio. Numa lição de humildade e desprendimento surpreendente, ele suspirou por alguns segundos e confessou:

- Nos perdemos.

Pediu que reavaliássemos juntos a decisão de subir naquelas condições. Certamente, naquele momento, falava a voz da experiência de piloto, atividade exaustivamente praticada por Sérgio na Marinha. Só que retornar ao terreirão também não seria fácil àquela altura. Há muito havíamos perdido o ponto de referência.

Toda câmera que se preza é feita para filmar, mas o que isso importava às 2h30 daquele sábado com neblina e rajadas de vento? Tínhamos a opção de guardar a recordação do que viesse a acontecer em nossas memórias ou filmar o que restasse de viagem, gastando mais bateria do que a luz demandava e, quem sabe, virar capa do noticiário caparaoense no dia seguinte.

Por isso, decidimos que a câmera seria, junto com a lanterna profissional de Sérgio, a luz de que precisávamos. Subimos uma hora por trilhas absolutamente incertas. Por um momento, Andreia até teve a sensação de reencontrar a trilha, m as a escuridão era tanta que bastou alguns segundos para nos darmos conta de que tamanho esforço havia sido em vão.

- Posição de bivaque, todo mundo!

A ordem de comando de Sr.Sérgio era impositiva. Nunca havia ouvido aquela expressão antes, aliás, nunca havia ouvido Sérgio falar daquela maneira antes, mas pelo frio que fazia, pela impossibilidade de continuarmos a caminhada e já sem a luz de apoio da câmera, imaginei se tratar de um procedimento emergencial. Significava termos de procurar um ponto de apoio no desnível entre uma pedra e outra, de modo que a de cima funcionasse como barreira contra o vento gelado. Caminhando em círculo há meia hora por um platô descampado, demoramos mais de meia hora para nos espremermos (ou inventarmos?) num pequeno desnível e nos viramos para pregar os olhos. No que restava daquela noite de incertezas, a única resposta era que não veríamos o amanhecer do Pico da Bandeira.

O relógio, uma das raras coisas que ainda funcionavam àquela altura, marcava 7h30. Sérgio nos acordou informando que precisávamos descer. A neblina ainda estava forte, a visibilidade nula, mas, ao menos, a claridade nos dava alento de que resolveríamos o dilema em alguns minutos. Uma hora mais tarde, céu nublado, porém com visibilidade suficiente para descer. Chegamos a pensar se valia a pena continuar a caminhada, já que era dia e reencontráramos um ponto de referência. Mas Sérgio interveio novamente. Pediu que fôssemos pacientes e reconhecêssemos que aquela não havia sido a nossa vez.

Foi inevitável a frustração, especialmente para quem nunca havia feito uma trilha. Mas se não pude chegar ao destino, aprendi definitivamente a lição. Muitas vezes o próprio caminho é o destino. Quantas vitórias não houve naquela derrota aparente? Superação física, mental, paisagens lindas apreciadas na volta, esperança de que é possível se chegar, mesmo que não quando desejamos. E, pensando bem, isso vale para tudo na vida. Por mais que nosso desejo aponte de forma segura e determinada para um ponto que chega a tocar o céu de tão alto, quando perdemos agora, não perdemos para sempre.

Em tempo, chegaria ao Pico da Bandeira no ano seguinte. Mas essa é uma outra história...

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