segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Vagar


Seu olhar cansado aponta para o nada. Sentada na cadeira de balanço de frente para a pequena televisão, contempla o vazio, no fundo a extensão de sua alma.


Já não se lembra de um minuto atrás. Uma hora que seja de recordações lhe parece fatigante. No máximo, alguns sussurros e fagulhas de memória. Sincroniza seu cotovelo esquerdo com um dos braços do assento mas seus olhos seguem imóveis. Sua pele lívida não deixa dúvidas: por dentro, o tempo parou. Por fora, passou.

Espera resignada o momento de sua partida, após quase 80 anos de vida, ao menos 70 deles de plena consciência, disposição, utilidade para si própria e para o mundo que a cerca. Agora, só faz carregar um certo sopro de tristeza. Não parece fazer diferença se acorda ou dorme, se é noite ou dia, claro ou escuro. Dentro ou fora.

Por isso, começa a trocar as horas. O tempo, antes companheiro fiel de sua lucidez, pára. E não importa que ela recline neste momento a cabeça para o seu lado direito, a procurar os ponteiros do relógio. Não sabe o que marcam. Apenas se limita a contemplar o vazio e dizer: "Está escuro lá fora". E aqui dentro também, faltou completar.

A culpa me contamina quando deixo escapar segundos preciosos de um fim que poderia ter mais alegria, conforto, auto-confiança, tudo o que aquele corpo ainda fosse capaz de sustentar. Se perdera o brilho, permanecia com movimentos potencialmente intactos. Impossível não voltar a três meses atrás, quando, mesmo aparentando fraqueza e debilidade, ela bailou por breves segundos o orgulho das lembranças de sua terra. Tão distante daqui e tão perto de sua mente fugaz. Quanto tempo faz? Para ela, não fez. Pois que derrubou quatro, cinco décadas com o bailar singelo de uma moça feliz a curtir seu primeiro salão.

De volta à realidade, procura motivo, movimento, continuidade. E isso posso oferecer. De fora pra dentro, como que se agradecesse e reverenciasse quem um dia teve tanta ou mais vitalidade que eu.

Por isso vou dormir mais triste. Nossa tristeza é separada por cinqüenta anos e alguns segundos a mais de reflexos e reflexões. Uma dor que nem ela se dá conta. Lucidez e dignidade. Se pudesse ofertá-los a ela, poria a cabeça no travesseiro com a certeza de que o domingo não teria sido em vão. 

Vai passar. Não importa como, mas vai.

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