segunda-feira, 14 de julho de 2008

Tabelas do destino


Mais rápido, mais alto, mais forte. Tudo que soou hiperbólico foi exaustivamente estampado em nossas TVs, afinal os Jogos Olímpicos são a nata da excelência esportiva, embora com alguns casos de superação que valem mais do que medalhas.

Cristina Galarza foge radicalmente dos padrões de estética e performance que esperamos de nossos heróis esportivos. Fui apresentado à jogadora de basquete há um ano, na zona mista da Arena Multiuso do Pan. Como repórter oficial dos Jogos, tinha a obrigação de colher frases das principais jogadoras de cada equipe. Naquele dia, havia sido Galarza.

Deveria perguntá-la sobre percentual de arremessos, movimentação em quadra e obviamente os seis pontos marcados na derrota por larga margem. A Argentina era uma equipe esforçada, muito aquém do time masculino campeão mundial. Antes de nos dizer a primeira sílaba, Cristina estendeu-me a mão. Retribuí o gesto com certo constrangimento. Estavam negras de tanto haverem tocado as rodas de sua cadeira. Ela abriu um largo sorriso e começou a responder às perguntas.

"O que dizer após uma derrota como essa?", propus

"Que devemos continuar lutando. Estar aqui já é uma vitória."

Logo percebi que tratar de arremessos, roubadas de bola e rebotes era desperdiçar a Cristina que havia por trás da Galarza. Entre uma resposta e outra, vi que nada daquilo era especialmente importante para aquela senhora de 46 anos encharcada de suor e com as mãos calejadas.

"Não tínhamos equipe formada desde o Pan de 95, em Mar del Plata. Não há clubes, então jogamos contra homens na Argentina. Foram eles que nos deram força para formar uma equipe e vir ao Rio. Mas sabíamos que não teríamos muitas chances. Viemos apenas pelo prazer de defender nosso país e realmente por falta de opções."

Esportivamente, a equipe de basquetebol em cadeira de rodas da Argentina não era minimamente competitiva. Perderia para qualquer equipe paraolímpica que se montasse no Brasil. A mais jovem do time não tinha menos de 30 anos e a mais velha já havia completado 56.

"Jogo basquetebol por puro prazer. Estava me profissionalizando na Argentina quando, repentinamente, comecei a sentir dores no joelho esquerdo. Isso aos 18 anos. Fui fazer exames de rotina e diagnosticaram câncer. Um tipo tão raro e destrutivo que me obrigou a arrancar
subitamente parte da perna, sob pena de ver a doença se alastrar."

Sabia que não publicaria uma linha sequer no Serviço de Notícias dos Jogos, um serviço que se resumia a contar como haviam sido as partidas acrescido de declarações rápidas dos atletas. Mesmo assim, não conseguíamos nos desvencilhar, separados pela grade de um metro que distinguia Cristina do jornalista e sua equipe de voluntários.

"No início foi mais difícil, mas me perguntei: vou me entregar? Vou deixar de fazer o que mais amo? Deixar de jogar basquetebol? Deixar de ser mãe? Sim, sou mãe de três filhos, todos concebidos após a doença. Eles dependem de mim. Em casa, somos tratados iguais. Mas, me diga, por que vêm me entrevistar? Não há ninguém aqui para falar de nós. Nossa seleção não traz resultados. Não interessa a nenhum jornalista".

Parei por segundos. Poderia dar-lhe a resposta oficial de que era procedimento de praxe e a entrevista seria encerrada. Foi quando uma voluntária interveio com rara sensibilidade.

"Se estamos aqui é porque queremos te ouvir. E sua história é um exemplo. Você é uma vencedora, de verdade. Não importa o que diga o placar".

A emoção contagiou os voluntários que me ajudavam na cobertura. Naquela hora, foi difícil separar o homem do profissional. Achava que ter visto Jade Barbosa, Diego e Daniele Hipólito; Daiane dos Santos, Janeth e Marcelinho tinham sido o bastante. Os 10 dias seguintes de Parapan valeram por 10 minutos de Galarza, que, agora em um choro indisfarçável, terminava de nos contar sua história.

"Está sendo tudo maravilhoso. Nunca imaginei jogar num ginásio como esse. Jamais pensei em ser entrevistada, ter importância para a minha nação. É um momento mágico em minha vida e sei que nunca mais o reviverei. Obrigado pelo carinho".

Em meio a lágrimas e silêncio, nos afastamos. E sentimos que algo não estava completo. Reuni os voluntários no dia seguinte para falarmos de Cristina.

"Acho que ela merece uma homenagem pela mãe, pela mulher e pela atleta que é. Por que não fazemos um kit do Pan para ela? Um pode dar a bolsa que ganhou para ser voluntário, o outro a garrafinha d'água, outro a pochete, enfim, também recebemos camisas demais da organização. Podemos dar umas quatro, uma para cada filho e outra para ela, fora o casaco e o boné."

"Se alguém tiver camisas da seleção brasileira, acho que também vale como recordação", sugeriu um dos voluntários.

A decisão foi unânime e no dia seguinte pouca coisa importava além de localizar Cristina. E foi até mais fácil do que imaginávamos. Após jogar a partida de despedida, fomos até ela.

"De novo? Sempre eu?", disse, abrindo um sorriso carinhoso, como se já nos conhecêssemos há tempos.

"Sim, nos conte sobre o jogo", disfarcei, já sabendo que o mais importante estaria por vir. Após algumas palavras, uma de nossas voluntárias lhe entregou o kit.

"É para você e seus três filhos. Não vamos nos ver mais. Então boa sorte e seja muito feliz. Tomara que eles também gostem".

Cristina parou por alguns segundos. Abraçou cada um de nós cinco, se esforçando para se apoiar, ora na cadeira, ora em uma das pernas. Demorou até dizer a primeira palavra.

"Gostarão sim. Estou muito grata. E certa de que sentirei uma saudade imensa de todos vocês. Muito obrigado. De coração. E até breve."

No adeus silencioso, me dei conta de que o Pan não havia sido Thiago Pereira, Ádria dos Santos ou Clodoaldo Silva. Nada calou mais fundo do que Cristina.

Um ano depois, tento achá-la em sites de busca e descubro que, fora daquela arena, ela é uma entre tantas. Em minha memória, a personagem perfeita. No computador oficial do Pan, sem uma linha de destaque. Perdida para sempre até mesmo onde tudo se encontra. Viva apenas na memória dos que compartilharam aqueles breves minutos com a guerreira Galarza, heroína que os deuses do Olimpo saberão reconhecer, mas que nossos livros de histórias olímpicas jamais contarão.

Um comentário:

Anônimo disse...

Sensacional, cara. Me emocionei e senti um tremendo vazio por não ter podido ficar para o Parapan.

Li um texto, há muito tempo, de uma escritora argentina, Beatriz Sarlo, que representa bem a história da Galarza: "El olvido que seremos".

Por mais que nossa história tenha lampejos ou feitos grandiosos, um dia, tudo será puro esquecimento. Mas acredito que, na memória de uns poucos, algumas histórias nunca hão de morrer. E o Pan, pra mim, estará sempre vivo.