terça-feira, 20 de março de 2007

Amantes profissionais

A cena do esforçado meio-campista Tinga adiantando a bola antes de se chocar com o goleiro Fábio Costa exige de Márcio Rezende resposta imediata. Sem alguém para lhe socorrer e com pouco tempo de decisão, o árbitro colhe de sua consciência o que ela pode lhe oferecer naquele momento. Simula a convicção com a qual decreta a inexistência do pênalti e põe na rua o falso atacante. Cartão vermelho para a despedida melancólica de Márcio dos gramados, - sujeito oculto de predicativos não raro desagradáveis - homem que parece conduzir o espetáculo com isenção e autoridade, vernizes que se desmancham diante das câmeras e do olhar apaixonado, porém atento, do torcedor.

O erro fatal do árbitro na partida entre Cortinthians e Internacional é a cereja do bolo amargo que brinda um campeonato programado para dar certo, sob a égide do Estatuto do Torcedor e da pretensa lisura dos pontos corridos. Mas cenas lamentáveis do longa-metragem 'Brasileirão 2005', com direitos a onze "remakes", evidenciaram, como poucas vezes, um conflito crônico entre paixão e razão; emoção e profissão, que contaminou grande parcela dos envolvidos no mais equilibrado campeonato de futebol do planeta.

A paixão move pessoas em direções imprevisíveis e inimagináveis. A paixão pelo lucro desmedido pôs fim à história de Edílson Pereira de Carvalho na arbitragem e manchou irremediavelmente o campeonato. A disputa de onze novas partidas era, aparentemente, o que havia de mais profissional a se fazer, mas, curiosamente, exacerbou seu oposto: o amadorismo dos segmentos que lidam com o futebol. O que se viu, nas semanas que se seguiram, foram mesas-redondas inflamadas, dirigentes advogando em causa própria, jogadores insensatos diante da perda de pontos anteriormente conquistados, torcedores enfurecidos e mortes nos estádios.


Morte também da confiança no profissionalismo, ou num amadorismo possível, morte nos tribunais, ágeis em demasia para assuntos de primeira categoria, morosos, entretanto, para aquilo que lhe competia intervir com rapidez. A segunda divisão seguiu irregularmente, mesmo
com a comprovação de jogos manipulados, e deixou questões no ar que só serão respondidas em 2006. Em suma, estava consumado o aborto de um projeto que tinha tudo para dar certo.
Quem teve a paixão de Márcio a seu favor fez bom uso dela. Com um elenco de estrelas perdidas, o Corinthians se despiu da vaidade por um momento e permitiu a continuidade do trabalho de um ex-atleta que iniciava carreira de treinador. Em pouco tempo, Márcio Bittencourt arrumou uma equipe desfigurada e transformou-a em candidata ao título.

Encerrou o primeiro turno na frente, mas foi vítima da insegurança de "profissionais" do futebol corintiano. Preferiram um nome de peso e trocaram São Jorge por Santo Antônio. A apaixonada Fiel torcida do alvinegro deu de ombros, afinal, os resultados com Lopes melhoraram o rendimento do time. Paixão de torcedor, como qualquer outra, é eterna enquanto dura.



Ser amante é estar em uma posição confortável, apesar de perigosa e sempre suspeita. É difícil até mesmo para quem veste a farda da isenção esconder a predileção por esta ou aquela equipe. No meio jornalístico esportivo muitas vezes isso rende distorções percebidas pelos torcedores. Fulano torce pro time X, mas é sabido nas redações que tem preferência pelo Y. Justamente por isso, muitas vezes carrega as tintas pendendo um pouco para o seu "rival de coração". De qualquer modo, é sempre mais fácil ser amante profissional, pago para opinar com base em dados, desculpando deslizes clubísticos com comentários aparentemente imparciais.


Juízes também são amantes: não existe profissão regulamentada para eles. Significa dizer que um dia escolheram o ofício por paixão. Paixão pelo sucesso, pelo controle do jogo ou pela cobiça de ganhar mais a partir do status, como demonstrou Edílson, que já virou redutivo de "juiz ladrão" entre as torcidas. Márcio Rezende foi refém de sua paixão, como a do comentarista que se recusa a revelar sua identidade clubística. Acontece que paixão em exercício é caso de amor explícito, pelo menos do ponto de vista do torcedor. Quando se aposentar, em breve, Márcio poderá ir para o outro lado das lentes e virar um amante profissional, podendo medir gestos e palavras. Mas ainda tinha um último ato a cumprir.

A CBF quis homenageá-lo entregando ao mineiro o apito para a decisão antecipada do campeonato. Infeliz decisão. Há dez anos, no mesmo Pacaembu onde jogavam Corinthians e Internacional, Márcio impunha uma triste mácula à própria carreira. Numa legítima final entre Santos e Botafogo, prejudicou os paulistas, validando legalmente um gol irregular de cada equipe e marcando impedimento no lance capital da partida, que poderia dar o título inédito ao Santos.

Ao se deparar com a cena de Tinga se chocando levemente com o goleiro Fábio Costa, Márcio não pôde deixar de se lembrar do Pacaembu de dez anos atrás. Da frustração de 28 mil santistas com o grito de campeão entalado, das pressões que sofreu nos dias seguintes. Enfim, o coração de Márcio Rezende de Freitas não pôde ser profissional o bastante para conter o ímpeto amador no lance decisivo da partida, o que o fez correr furiosamente em direção à área dos "tobogãs" para expulsar, por simulação, o jogador da equipe colorada, em infeliz condição de visitante.

O erro de Márcio não é premeditado nem acidental, mas histórico, subconsciente. Como quem quisesse consertar o que não pôde dez anos atrás no mesmo local, na mesma área dos três gols duvidosos. Todos sabem, inclusive Márcio, que, a duas rodadas do final, a tabela certamente seria outra sem a anulação dos onze jogos, e episódios lamentáveis de amor e paixão não teriam se consumado com a proliferação da desconfiança de jogadores, dirigentes e torcedores em

relação aos homens do apito. Como fez Muricy Ramalho e a direção do Internacional após o empate por 1 a 1 em São Paulo, evocando uma teoria conspiratória pró-corintiana e pedindo que a taça de campeão fosse logo entregue à equipe paulista.

Seja quem for o campeão, o troféu de 2005 terá a reluzência de um carro importado alvinegro e o vermelho escorrendo por suas beiradas. Vermelho de gaúcho colorado, vermelho de vergonha pelo que poderia ter sido e não foi. Tudo isso, com a solene assinatura de árbitros, tribunais, dirigentes, jogadores, torcedores e, por que não, amantes profissionais.
***
Abaixo, os melhores momentos de Corinthians 0 x 0 Internacional, no Pacaembu, pelo Campeonato Brasileiro de 2005. As imagens são da Rede Globo e a narração de Cléber Machado, com comentários de Paulo Roberto Falcão, Válter Casagrande Jr. e Arnaldo César Coelho Sportv e a narração de Luiz Carlos Jr..

3 comentários:

Sidarta Martins disse...

Sua tese sobre o márcio é interessante. Mas uns caras do paraná tem uma mais. A de que a PEPSI patrocinava o Corinthians, o Boca e o Botafogo.

http://canais.rpc.com.br/deprimeira/conteudo.phtml?id=514483

Dê uma olhadinha.

Rafa Barros disse...

Sidarta,

Aprecio o interesse em desvendar intenções ocultas, afinal nosso mundo(em geral) está cheia delas. A questão é que não consigo ver uma forma de essa teoria ter sido validada no campeonato de 2005. Vamos lembrar que muitos interesses estão em jogo e que, mesmo para os patrocinadores, é importante a manutenção ao menos de uma aura de lisura na disputa dos campeonatos. Também devemos considerar a existência de profissionais pagos e treinados para desvendar esse tipo de esquema. Os jornalistas são uma dessas categorias. Um pode errar, um grupo grande pode se omitir, mas toda a imprensa se deixar enganar? Isso sem dizer nos órgãos como o Ministério Público e os auditores da Polícia Federal, que, por mais corrompíveis que fossem, não deixariam tal esquema passar imaculado.
Mas vamos continuar atentos a supostas falcatruas e não deixar que o futebol se contamine ainda mais delas.
Abraços e recomende o blog, se gostar!

Sidarta Martins disse...

Eu resolvi colocar um trecho do seu blog lá no que escrevi sobre a hipótese dos curitibanos.

Abraços,