quarta-feira, 28 de março de 2007

Romário dignifica o 1.000

Pouco importa se as contas são do Romário, da Fifa ou do raio que o parta. O milésimo gol do Baixinho nada tem a ver com os 999 anteriores. O onze ressucitou o mil, ainda que alguns não queiram dar a menor bola para isso.

Primeiro foi o Plano Real, que acabou com a brincadeira sinistra de pôr e tirar três zeros da moeda. Inflação controlada, tudo passou a ser na casa do um, dez, cem e... ponto! Quem conhecer uma nota de mil reais que atire a primeira pedra. Mas parem para pensar em quantos milhões de dólares cabem em uma maleta. Alguém esconde milhares de verdinhas em uma cueca, ainda que isso atente contra as leis da física? Definitivamente, não. As falcatruas são
sempre na casa do milhão pra cima ou do milhar para baixo, dependendo da situação financeira ou da largura da cueca do cidadão. Aliás, alguém se lembra do milhar? Antes, era sinônimo de dinheiro fácil. Hoje, cheira contravenção das brabas!


Não bastasse ser sumariamente retirado das conversas de botequim, o mil caiu em desuso também na indústria automobilística. Carros econômicos de mil cilindradas, carinhosamente chamados de '1.000', mudaram a alcunha para 'um ponto zero' - veículos ótimos para o bolso e desastosos para a perpetuação dos três zeros.

O último dos milhares que resistia bravamente na cultura prosaica virou sinônimo de ultrapassado. Tente dizer daqui a alguns anos que você nasceu em mil novecentos e alguma coisa. Vai ser tratado como um fóssil ambulante. Hoje é assim: quem ousar resistir ao novo milênio cheira mofo. Até os chefes supremos sucumbiram à queda do mil: o Papa mudou, Saddam morreu, o maior edifício do mundo caiu e nem a milenar sabedoria oriental
resistiu ao choque de civilizações.

Vai ver por isso a massa cinzenta de muita gente anda se revirando na caixa craniana quando vê aquele sujeito marrento, de metro e meio, que tem o número de sua camisa imortalizado num clube governado despoticamente, e ainda por cima reivindica a audácia de ter os gols registrados em seu... caderninho! Quer coisa mais antiquada do que um senhor de 41 anos querendo reinventar o 1.000 na base da caneta?

Dizer que Romário desafia o tempo soa lugar comum. Digamos então que o Baixinho faz o tempo parecer um detalhe. Com a mesma habilidade que trata a bola dentro da área, faz zagueiros pararem, o tempo congelar e a idade não avançar.

O incômodo com Romário vem da desenfreada sociedade de consumo, diriam os velhinhos da Sorbonne. O problema é que nem eles estão aí para contar história. É mais fácil então pôr a culpa nos números. Os mesmos que derrubam ministros, edifícios e treinadores são os responsáveis pela depreciação da proeza de Romário de Souza Faria. Faltam às contas do jogador a precisão de seus chutes? Problema do milhar. Ou alguém vai negar que há uma atração milenar entre Romário e as redes?

Mas o futebol moderno são outros quinhentos. Imagina se, em pleno século XXI, um estádio repleto de torcedores adversários aplaudiria Pelé, por exemplo? No mínimo, fariam comunidades virtuais hostilizando o Rei, dizendo que ele só bate em galinha morta. Bom se ele balançasse as redes daquele time da Liga de Netuno que tem um goleiro tcheco...

No fundo, no fundo, o que mais incomoda o planeta de misérias e milhões é ver aparecer um gênio do século XX que ousa dar brilho à sutileza intermediária de um milésimo em desuso.